Por Jorge Fernandes
“E tinha esta uma irmã chamada Maria, a qual, assentando-se também aos pés de Jesus, ouvia a sua palavra. Marta, porém, andava distraída em muitos serviços; e, aproximando-se, disse: Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só? Dize-lhe que me ajude. E respondendo Jesus, disse-lhe: Marta, Marta, estás ansiosa e afadigada com muitas coisas, mas uma só é necessária; e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”(Lc 10.39-42)
A Bíblia afirma que o crente é um ser separado. Separado para Deus, e do mundo. Estamos no mundo, mas não pertencemos a ele (Jo 17.16); antes, somos de Deus, propriedade Sua, comprados por alto preço (1Co 6.20). Então, porque a maioria de nós “devota” a totalidade do seu tempo, das suas energias, dos seus dons e talentos, do seu dinheiro, da sua atenção, do seu estudo, e de tudo o mais que o cerca, a fim de satisfazer-se no mundo, pelo mundo e para o mundo?
Vejo muitos falando de Cristo. Muitos o chamam de “senhor”. Alguns choram, emocionados. Outros demonstram uma confiança parecida com a que se deposita em um talismã. Como se o nome de Cristo fosse uma ferradura ou um pé-de-coelho, ou na melhor das hipóteses, uma chave que abrirá todas as portas... as que eu quero abrir, as quais me satisfarão. Crêem que o nome de Jesus tem um poder imanente, bastando proclamá-lo para que, num passe de mágica, tudo ao nosso redor se transforme em satisfação pessoal. E isso é mais do que o suficiente para elas. Falar de Cristo vez ou outra, sem compromisso. Pensar Nele como um “gênio da lâmpada”, pronto a realizar todos os nosso caprichos, como se nós fóssemos deuses, e Ele, criatura. Será isso conhecê-lO verdadeiramente?
Jó entendeu que o conhecimento de Deus é muito mais do que ouvir falar Dele, e repetir aos quatro cantos, como um papagaio, o que ouviu: “Por isso relatei o que não entendia; coisas que para mim eram inescrutáveis, e que eu não entendia. Escuta-me, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás. Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te vêem os meus olhos” (Jó 42.3-5). Reconhecendo a dimensão do seu erro, ele concluiu: “Por isso me abomino e me arrependo no pó e na cinza” (Jó 42.6).
Estar no mundo não é pertencer a ele. Nem ao menos se agradar com ele, quanto mais viver em função dele. Essa não é a nossa glória. Nem a nossa atribuição. O nosso dever é o de obedecer ao nosso Senhor, proclamar o Seu Evangelho e glorificá-lO. Parece simples, e talvez por isso, negligenciamos tanto essa incumbência dada-nos por Cristo. Em muitos casos, desprezamo-la, em favor da nossa glória pessoal. Quantos não se empenham até o sangue por um diploma? Pelo cargo de executivo? Pelo carro novo, viagem, ou pelo novo desejo que se seguirá a outro desejo realizado? É um círculo vicioso, que nos domina, nos consome, e tira-nos do privilégio supremo de servir ao nosso bom Deus.
Quantos de nós não se encontram “encantados” pela tv, pelo sexo, pelo futebol, pelas festas e shows, que não têm um momento sequer para ler, ouvir e meditar na Palavra de Deus? Quantos de nós oram numa fração de segundo, enquanto passam horas e mais horas diante da tela do computador ou da tv envenenando-se, repetida e maciçamente, com as toxinas do mundo? Não ficam um dia sem eles, mas podem ficar semanas, meses e até anos sem ouvir uma pregação, sem comunhão com os santos, sem confortar um irmão, sem contribuir para a obra de Deus, sem interceder pelos que sofrem, pelos que morrem, e pelos condenados eternamente.
Pelo contrário, como luzes que deveriam iluminar o mundo, não o fazemos (Mt 5.14), antes nos misturamos às trevas, tornando-nos participantes dela (Lc 11.35). Seduzidos como o marido infiel pela amante (na verdade, seduzidos pelo nosso pecado, pela nossa rebeldia, pelo desprezo a Deus), voltamo-nos para o mundo, como se jamais tivéssemos saído dele.
No texto acima, Marta era uma discípula do Senhor. O amava, reconhecendo-O como o Cristo (Jo 11.27), queria agradá-lO naquele momento em que O recebia em casa. Estava atarefada, preocupada com os seus afazeres, distraída em muitos serviços; provavelmente, suas intenções eram as melhores, queria servir correta e adequadamente ao Senhor, queria que Ele se sentisse confortável e que desfrutasse da sua hospitalidade; inebriada em seu trabalho não percebeu como estava errada, e de como desperdiçava não somente o seu tempo, mas a sua energia, em ansiedade e cansaço. Marta, certamente, seria uma “workaholic” dos nossos dias, uma viciada no que faz, vivendo para o que faz, e não pelo que faz; ela seria uma das vítimas do stress, da estafa, talvez até mesmo da depressão pós-moderna. Por isso, o Senhor nos adverte: “Mas os cuidados deste mundo, e os enganos das riquezas e as ambições de outras coisas, entrando, sufocam a palavra, e fica infrutífera... Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” (Mc 4.19; 8.36). Paulo exorta-nos a não sermos conformados com este mundo, mas sermos transformados pela renovação do nosso entendimento, para que experimentemos qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2).
Marta não compreendeu o mesmo que sua irmã Maria, de que, ao invés de proporcionar conforto ao Senhor, era ela quem deveria desfrutar do Seu consolo. Como alguém que não vê além do próprio nariz, queixou-se a Jesus por “reter” a Maria que O ouvia, enquanto ela, pobre-coitada, se desdobrava em servi-lO. Foi, sem dúvida, um atrevimento da parte de Marta, uma repreensão tola e mal-educada (especialmente porque ela parecia querer agradar ao Senhor... ou queria mostrar a sua eficiência?), peculiar às mentes dominadas e minadas pelo pecado do individualismo, do egocentrismo. Marta, literalmente, “pisou na bola”. Em sua agitação despropositada, interessada em ser uma boa anfitriã, em atingir suas metas e obter os resultados pelos quais se esforçava, ela se esqueceu do mais importante: adorar ao Deus vivo. O seu erro foi agravado ainda mais pelo fato de considerá-lO um insensível: “Senhor, não se te dá de que minha irmã me deixe servir só?”. E a aflição e a insensatez da sua alma, levaram-na a julgá-lO equivocado na forma em que agia: “Dize-lhe que me ajude”.
Quantas vezes ignoramos, ou somos tentados a duvidar de Deus? E em outras a censurá-lO? Com qual direito agimos assim? “Ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?” (Rm 9.20).
Mas a Cristo coube uma advertência amorosa, pacífica, repleta de compaixão e misericórdia; contudo, imperativa, reveladora o suficiente para que ela pudesse aperceber-se de seu grave erro: “Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada”.
A comunhão com Deus é a única indispensável a nossas vidas. Devemos buscar sempre, e em primeiro lugar, o Seu reino e a Sua justiça (Mt 6.33). O mundo e tudo o que nele há, passará. O que plantamos agora, daqui a pouco, de nada servirá, tornando-se inútil. E muito do que nos esforçamos em alcançar continuamente é irrelevante, supérfluo; “porque, onde estiver o vosso tesouro, ali estará também o vosso coração” (Lc 12.34).
Pois, se alguém ama a Deus, é conhecido dele (1Co 8.3); e para os filhos de Deus, somente isso é necessário... Como Maria entendeu gloriosamente, ao deleitar-se em conhecer o seu Senhor.