sábado, 26 de fevereiro de 2011

Livro do mês: Deus e o Mal, o problema resolvido



          Por Jorge Fernandes Isah

Antes de ler textos esparsos de Clark e Cheung no Monergismo, eu vivia interrogando irmãos mais experientes na fé [e que são pessoas letradas, que entendem muito de teologia] sobre as implicações do mal na soberania de Deus. Normalmente a resposta era de que não havia respostas. Há, mesmo entre calvinistas, a idéia de que Deus é soberano e o homem é livre em algum aspecto. Mas eu não conseguia conciliar as duas coisa, nem mesmo via essa tal liberdade decantada, em livros e sermões, na Escritura. O que eu via era o homem agindo sempre segundo o propósito divino; e ao me deter no texto do Antigo Testamento, a coisa ficava ainda mais claramente delineada e exposta.

Livros como o de Jó, Isaías, Jeremias, João e Romanos, foram decisivos para eu abandonar completamente a possibilidade de conciliar a soberania de Deus com a liberdade humana, seja na forma de livre-arbítrio ou livre-agência.

Então acostumei-me a ouvir que havia paradoxos na Bíblia e de que eles existiam conjuntamente como uma espécie de  "mistério", ao qual Deus não nos revelou. Porém, nada disso me confortava; e lendo grandes teólogos [Spurgeon, LLoyd-Jones, Sproul, Piper, etc] a coisa toda não se resolvia. Era como se eles caminhassem até a conclusão final e, quando estavam prontos para enunciá-la, parassem, retrocedessem, e se conformassem com o tal do "mistério" ou do "paradoxo". Eu continuava frustrado e decepcionado, mas já vislumbrava uma hipótese que não assumia efetivamente por medo e temor do que viessem a pensar ou falar de mim [não é agradável para um crente ser visto como herético ou heterodoxo, ou quando menos, um irresponsável por cogitar o que muitos não consideravam possível. Sempre ouvia: "irmão, você está querendo ir onde os santos não ousaram ir. Cuidado!". Era quase uma "praga" proferida, de que não me arriscasse a ir, senão...].

Um belo dia, deparei-me com Gordon Clark [de quem nunca ouvira falar], e um pouco depois, Cheung. Lê-los foi um alívio, como se tivesse tirado toneladas de peso às costas, pois eu me certifiquei de que não era louco, nem herético, ou simplesmente um provocador, mas de que minhas dúvidas eram honestas, verdadeiras, e de que outros haviam pensado assim como eu. É claro que havia semelhança entre a minha interpretação e a dos autores citados, sem contudo a clareza e a pontuação dos múltiplos detalhes que expunham, e que não deixou também de ser uma descoberta, à medida que os lia. Poder ordenar aquilo que eu cria bíblico, a partir da busca pela lucidez e o conhecimento necessários para entendê-lo [em constante oração e leituras bíblicas e teológicas], trouxe-me o desejo de meditar e aprender sobre a soberania de Deus, e de como ele controla o mal segundo os seus santos propósitos. Este foi um momento de muita alegria  e, juntamente com ela, o alívio por não estar sendo apenas um tolo, teimoso ou blasfemo como muitos supunham que eu era.

Quando finalmente tive em mãos o PDF do "Autor do Pecado" [cujos comentários podem ser lidos aqui; e hoje produzido em formato de livro físico], praticamente todas as minhas dúvidas sanaram-se [dentro da minha limitação teológica e intelectual, claro!].

Agora, com “Deus e o Mal” em mãos, penso que se tivesse lido-o anteriormente, e até mesmo antes do Autor do Pecado, a coisa teria sido mais fácil e menos dolorosa.

Interessante que Gordon Clark é chamado de o “Agostinho da América” e, exatamente neste livro, ele diverge e combate a idéia de Agostinho quanto ao mal e o livre-arbítrio. É claro que a alcunha não quer indicar subserviência nem a defesa de todos os princípios propostos pelo Pai da Igreja, até porque, Agostinho, no final da vida, negou alguns pontos que defendera anteriormente [li, não sei onde, que um desses pontos é o livre-arbítrio, mas preciso buscar a fonte].

Ainda mais interessante são os argumentos que Clark advoga, muito parecidos com os que defendi em meus comentários sobre a questão do mal e o livre-arbítrio exposto por Agostinho no livro "Confissões" [e que podem ser lidos acessando o link]. Também, de uma forma mais clara, defendi-os em alguns textos aqui no Kálamos: "A Incoerência do Livre-Arbítrio",  "Mysterium Compatibilista" e "Preso na própria armadilha".

Agora, ao ler "Deus e o Mal", deparo-me com um pensamento muito próximo do que eu mesmo considerei anteriormente; o que novamente reavivou aquela antiga alegria de estar sendo guiado por Deus a utilizar-me mais da razão no trato com o texto bíblico e com livros teológicos. Sem dúvida, Gordon Clark está mil anos-luz ou mais à minha frente, e nem que eu vivesse mais cem anos o alcançaria. Porém, saber que mesmo incipientemente minha mente está sendo renovada diariamente pelo Espírito Santo, em si mesmo já é uma fonte de enorme e viva alegria.

Ao final do livro, posso declarar que, apesar de não ser um grande volume no tamanho, ele o é no seu conteúdo. Clark lançou por terra qualquer ideia de misticismo e irracionalidade na compreensão escriturística, e de que somente podemos fazê-la corretamente se os pressupostos também o forem. A Bíblia se autoexplica, e qualquer apelo fora dela trará apenas confusão, fruto da ignorância e da manipulação de conceitos e termos por parte daqueles que querem afastar-se da verdade.

Chamou-me também a atenção, e já havia percebido em outros textos, o fato de Clark defender a CFW, ou melhor, a interpretação correta da CFW quanto à questão da livre-agência [indicando o erro interpretativo da maioria que a lê]. Eu sempre tive a impressão de que a CFW era compatibilista, não determinista, mas Clark assegura-nos a sua determinação quanto à rejeição de qualquer liberdade do homem que o coloque numa condição de ser livre de Deus.

Ao definir a livre-agência como uma "causa necessária ou secundária", controlada por Deus, para que o homem realize exatamente aquilo que ele decretou eternamente, em que o homem é livre em sua vontade ou volição, mas não nas causas que o levaram a querer aquilo, a coisa toda, que mais me parecia um "artifício" para fugir do determinismo bíblico, tomou outros contornos. Mas é algo que ainda terei de meditar, terei de assimilar e rever, para depois aceitar. McGregor Wright tem a mesma posição de Clark, e Cheung parece diferir dos dois, aproximando-se muito mais do que eu mesmo acredito, de que livre-agência não passa de um termo criado para, ao mesmo tempo afastar-se da expressão "livre-arbítrio' e defender a liberdade humana sem a qual não haveria responsabilidade [os textos que indiquei poderão auxiliar no entendimento do que efetivamente penso].

Um trecho interessante, mais uma exortação à defesa da fé, fugindo do apelo "sensorial" que o humanismo quer prestar ao Cristianismo bíblico, é o capítulo final do livro, intitulado "A crise da nossa era". É um apêndice, talvez não escrito por Clark, mas revelador e profundo, ainda que seja uma pequena peça a analisar o estado em que boa parte da igreja atualmente se encontra.

E tenho para comigo, assim como o subtítulo do livro diz, que o problema está resolvido.

Nota: Mais do que uma crítica ou um ensaio, esta postagem tem o caráter de depoimento, de testemunho. Considerei que devia um agradecimento especial aos dois autores, ainda que não possam me ouvir e ler, e um agradecimento especial ao Felipe, da Editora Monergismo, por ser usado por Deus para publicar esses livros que, de outra forma, provavelmente não chegariam ao leitor brasileiro que não lê em inglês. Esta postagem foi mais uma atitude de gratidão a eles do que qualquer outra intenção. E que venham outras obras de Gordon Clark em português.

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sábado, 19 de fevereiro de 2011

O Deus irredutível

















Por Jorge Fernandes Isah

Se há algo que tem me marcado ultimamente, e o qual tenho sido ensinado através das Escrituras, é Deus revelar-se em poder, glória e majestade na sua Criação; de que a revelação natural manifesta ao mundo todo o esplendor, infinitude, domínio, e intensidade do eterno poder divino [Rm 1.20], ao ponto do mais ignorante dos homens, e até mesmo os ainda mais ignorantes que ele [os ateus], não estarem livres de formular conceitos e idéias sobre Deus, numa disposição, o “sensus divinitatis” [1], de que existe o Criador. Ela perpassa todos os homens, crentes ou não; e o próprio fato do cético afirmar a sua descrença é a declaração de que, mesmo opondo-se a Deus, ele não pode se ver livre dele. Ao negá-lo, apenas revela a consciência, mesmo deturpada, caída, corrompida, de que ele possui a consciência de Deus.

Na verdade, o ateu, ao se debater e se bater para provar a não existência do Criador, dá o testemunho secreto da alma de que ele existe. A prova está em como essa rejeição toma-o de assalto, de tal forma que ela preenche a sua vida tornando-o indissociável da idéia de Deus, ainda que negativamente. O objetivo passará a ser opor-se-lhe, com o empenho, dedicação e esmero digno de um adorador, porém um adorador disposto a destruir o objeto de adoração. Pois, em sua ignorância, ao negá-lo, nega-se a si mesmo. Da mesma forma que ele não pode se cortar sem sentir dor, é impossível a vida sem Deus. Se a morte precisa da vida para existir; se o bem não houvesse não existiria o mal; se o feio carece do belo para ser; a vida também depende de Deus para subsistir. Não uma antítese, como nos casos citados anteriormente, mas sem ele nada haveria ou poderia simplesmente existir ou ser feito [Jo 1.3].

Ninguém nasce ateu; o ateísmo é o ápice da rebeldia contra a autoridade divina, e acontece numa fase temporária, como se o homem estivesse em coma e perdesse a sua consciência. O ateu é um inconsciente, a autoministrar-se doses regulares de pecaminosidade, ao ponto de se considerar autônomo, sendo a sua independência irreal sustentada pelos anestésicos que o mantém em estado de torpor, e assim é-lhe incapaz ter a noção exata do que se passa em torno dele ou com ele. Julgando-se habilitado a desafiar a Deus, convencido de estar procedendo em coerência com a sua percepção geral, ele estaria na mesma condição de, por exemplo, alguém afirmar estar em terreno seco quando a água está-lhe a cobrir a cabeça. Quem nega a revelação natural e, por conseguinte, Deus, incorre em autoengano, quando a sublevação instala-se violentamente ao ponto de se auto-afirmar ser necessário repudiá-lo, renunciar à sua vontade, não admitir a sua existência a qualquer custo, e, então, ainda que seja pela vontade, uma vontade delineada pela injustiça, chegar ao estágio em que todo homem almeja, no íntimo, alcançar: autoproclamar-se deus. Com isso, o que consegue é apenas iludir-se com a idéia de que assentou definitivamente no trono quando nem mesmo ainda entrou nos limites do castelo: mudar a verdade em mentira [Rm 1.25].

Há o negar-se Deus para reafirmar o homem. Há o negar-se o conhecimento para se desconhecer. Há o negar-se a culpa para se viver impiamente. Há a não glorificação de Deus para se autogloriar na escuridão do coração insensato. Há o desprezo à sabedoria para o louvor da loucura... E, assim, diz “o néscio em seu coração: não há Deus” [Sl 14.1]. Somente o tolo pode não se aperceber disso, mas o simples fato de imbuir-se de uma cruzada contra o Criador, exclui qualquer possibilidade de não-consciência da realidade de que ele existe; apenas não quer aceitá-la; na recusa de confessar-se a imagem dele, ainda que esteja distorcida pela Queda e o pecado. Seria o mesmo que alguém visitasse uma “sala de espelhos”, onde as imagens de si mesmo são disformes, e dissesse: “como é possível eu me reconhecer nelas se não se parecem comigo? Se não se parecem comigo, não sou eu; e se não sou eu, como posso me reconhecer?”.

A lógica, ou a falta dela, é mais ou menos o que o homem pode apreender de si mesmo a partir de uma imagem deformada de si. E teimar em negar Deus a partir da imagem deformada que construiu, ou da sua destruição interior, e insistir em perguntar: como posso reconhecê-lo? Porém o Senhor nos deu não somente indícios, mas evidenciou todo o seu poder e glória através da Criação; que se pode considerar como o som produzido por ele para o deleite dos nossos ouvidos. Ocorre que há os surdos, os impossibilitados de ouvir[2], e pelo fato de não ouvirem, alardeiam aos quatro cantos que não existe som, de que ele é uma ficção ou apenas uma muleta para provar-se que a língua, cordas-vocais, palato e os lábios têm um significado e não são inúteis, assim como os ouvidos também têm de ter um propósito que justifique-lhes a vida. É o mesmo que se dispor a crer no poder do acaso e da aletoriedade, supondo   que compreendem a realidade ou até a criaram, como se a "roleta-russa" [3] fosse capaz de projetar a arma, o projétil, o crânio e o sangue a jorrar-lhe, ou o simples estalido seco da câmara vazia do revólver. 

Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, pode se aperceber da verdade de que Deus é o Senhor do universo, porque "no princípio criou Deus os céus e a terra" [Gn 1.1]. Por onde andamos, para onde olhamos, no que tocamos, está evidenciado que o mundo é o lugar onde Deus diz muito de si, a gritar a sua sabedoria e poder; a ordenar aos homens que o adorem; porque “os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos... não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até o fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol” [Sl 19.1,3-4].

Mesmo se uma pessoa tivesse nascido em uma ilha deserta, sem qualquer contato humano, inclusive com os pais, somente pela obra das mãos divinas seria possível a esse homem vê-lo, pois além de serem feitas por ele, elas o revelam. Com isso, não estou a dizer que a revelação natural é suficiente para o homem conhecer a verdade, ainda que não houvesse o pecado e a Queda[4], mas seria suficiente para reconhecer o seu poder e glória, honrando-o como o Criador e Senhor de todas as coisas que vieram à existência por sua vontade.

Vale ressaltar que a revelação natural não pode salvar, nem trazer ao homem um relacionamento com Deus. Ela é suficiente para condenar o homem, para revelar que Deus existe, e de que é o Criador e legislador do universo. Ao se rebelar, o homem rejeita todas as evidências que ela lhe apresenta: a origem divina do Cosmos e das leis que o ordenam; a origem divina da lei moral, cuja consciência é-lhe inerente e na qual não quer se submeter. Por isso, Paulo diz que o homem é inescusável diante de Deus, por não querer entendê-las nem vê-las.

Portanto, Deus se revela na Criação, mas essa revelação não é capaz de levar o homem a vê-lo além do seu poder; pois outros atributos como o amor, bondade, misericórdia e graça somente podem ser conhecidos através da revelação especial. Assim, posso concluir esta parte com a seguinte afirmação: Deus revela através da natureza o seu poderio, mas o seu amor somente pode ser conhecido pela Palavra. E essa palavra é Cristo!

Notas: [1] “Sensus Divinitatis”[encontrei também a grafia “divinitatis sensus”] é o conhecimento inato ou a disposição ao conhecimento de Deus inerente à mente humana, dada pelo próprio Deus. Paulo define-o assim: “Porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho manifestou” [Rm 1.19].
[2] Analogia a Jo 12.40.
[3] É um jogo de azar onde os participantes colocam uma bala - tipicamente apenas uma - em uma das câmaras de um revólver. O tambor do revólver é girado e fechado, de modo que a localização da bala é desconhecida. Os participantes apontam a arma para suas cabeças e atiram, correndo o risco da provável morte caso a bala esteja na câmara engatilhada. 
[4] Não acredito que fosse possível ao homem [mesmo Adão, antes da Queda], o conhecimento perfeito do Criador; porque encontramos na sua Criação uma parte dos seus atributos, ainda que se possa dizer que o amor e a bondade estão manifestos nela. Deus somente pode ser conhecido através da revelação especial, e mais detidamente através do Redentor, Jesus Cristo. Como esse ponto será abordado em outro texto, deixo apenas a minha convicção de que o pecado e Queda foram decretados por Deus para que o seu povo pudesse conhecê-lo verdadeiramente

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Predestinação em Gênesis 4


"Por que Deus não se agradou de Caim?
  Por Jorge Fernandes Isah

Estou às voltas, esta semana, com a leitura do livro de Gênesis; e ao ler o capítulo 4, veio-me a questão: Por que Deus não se agradou da oferta de Caim, e se agradou da oferta de Abel?

A maioria tem como explicação o fato do sacrifício de Abel ter sido com sangue e o de Caim não; levando-se a crer que o fato de Abel ter escolhido dos primogênitos das suas ovelhas e das suas gorduras [indicando morte, sacrifício de inocentes, sangue derramado; assim como o próprio Deus sacrificou animais para, com suas peles, cozer roupas que escondessem a nudez do casal primevo], remetiam ao futuro, como “sombras” a indicar o sacrifício de Cristo na cruz do Calvário, como o Primogênito de Deus, o Cordeiro imaculado, inocente, que derramou o seu sangue para que muitos fossem salvos e tivessem seus pecados expiados, milhares de anos depois.

Entendo que essa conclusão é parcialmente correta. Ela aponta para a necessidade da morte como forma de se pagar os pecados; sendo o justo aquele que remirá o seu povo e, somente assim, ele será purificado de suas iniqüidades e libertado da condenação. Mas, ainda algo persiste em fustigar a mente: os irmãos sabiam como ofertar a Deus ou não? 

Há os que entendem que ambos sabiam a maneira correta; mas, ao meu ver, não. O texto não traz nenhuma referência de como eles deveriam agradá-lo; se conheciam ou não, de antemão, como ofertar-lhe; apenas nos revela que:

a)     Eva deu à luz a Caim, e depois a seu irmão Abel [V.1-2];

b)     Abel foi pastor de ovelhas; e Caim, lavrador da terra [v.2];

c)     Caim trouxe do fruto da terra, e Abel tomou dos primogênitos das suas ovelhas e da sua gordura, como ofertas a Deus.

Um adendo interessante, que pode nem mesmo ser relevante, é o da Bíblia informar o nascimento na ordem de primogenitura: Caim e depois Abel. Um pouco mais à frente, ela cita a profissão de Abel, como pastor, para, em seguida, citar a de Caim, lavrador. Mais um pouco e temos Caim ofertando primeiramente que Abel, e este o seguiu, talvez respeitando alguma preeminência que o irmão mais velho teria, de tal forma que somente após a sua oferta, Abel pode fazê-lo também. O que me leva a crer que a ambos não foi ordenado como agradar a Deus, e de que as suas atitudes foram naturais, espontâneas, de levarem a Deus o produto de suas atividades, daquilo que produziam, e que lhes era inerente às vidas e habilidades; sem que pudessem agir de maneira diferente, a não ser Caim dar dos frutos do seu trabalho e, também, Abel.[2]

Ambos parecem sinceros, dispostos a agradar a Deus e, ao menos em princípio, descartarei a possibilidade de qualquer inclinação rebelde ou má da parte do primogênito de Adão. Numa perspectiva humana, queriam o melhor, dar o que tinham de melhor, tanto de si mesmos como dos seus esforços. Agradar ao Senhor era uma forma de recompensa pelos seus trabalhos, pelo suor dos seus rostos, o que é indicativo de esmero e dedicação para com as ofertas, mesmo que a gratidão não fosse a mola-mestra que os levasse a reconhecer o bem que Deus lhes proporcionou [ao menos, no caso de Caim, isso é possível, como uma inferência. Ele queria se ver reconhecido por estar "dando" a Deus o fruto do seu suor, o melhor que tinha para dar, o que tornaria a sua motivação em auto-idolatria, ao não reconhecer o Senhor como aquele que lhe deu e capacitou-o a dar].

Outra defesa que muitos advogam para Abel é de que ele era justo, por isso sua oferta foi justificada diante de Deus, ao contrário do seu irmão. E isso é uma verdade. Deus aceitou o seu sacrifício porque ele ofereceu algo maior do que Caim [Hb 11.4], pela fé, e se a fé é um dom de Deus [Ef 2,8], o próprio Senhor propiciou-o a dar na medida correta, exatamente aquilo que seria do seu agrado. 

Não é interessante que Caim poderia ser Abel? Se houvesse uma roleta a determinar aleatoriamente a personalidade e a identidade das pessoas? Poderia ser ele a pastorear ovelhas, enquanto o caçula a lavrar a terra, o que mudaria o curso da história, a partir da mudança dos seus personagens? Contudo, aprouve a Deus, em sua soberania, predestinar Abel e Caim para que cumprissem os seus eternos propósitos, de maneira que os acontecimentos transcorressem assim como havia planejado; remetendo-me à questão apontada no item “b”, de que a primogenitura foi tirada de Caim e entregue a Abel.

Alguém poderá dizer que o fato da Bíblia citar o trabalho de Abel primeiro é simples coincidência. Como não acredito em sorte, azar, acaso e coincidências, mas apenas na providência divina de realizar tudo segundo o seu santo e eterno decreto, a citação é indicativa de que também a profissão foi um fator determinante para a oferta ser agradável ou não a Deus. Quando o Senhor predestinou Abel para pastor, ele o fez com a nítida certeza de que ele e sua  oferta o agradariam, e não o outro. Ao determinar que Caim seria lavrador, sua oferta já estava rejeitada, muito antes do mundo ser mundo, e de Adão vir a habitá-lo. Deus providenciou que tudo se cumprisse convenientemente para que Abel o agradasse, e Caim não. Fazendo uma analogia com Esaú e Jacó [Rm 9.13], podemos dizer, sem dúvidas, que Deus amou a Abel e odiou a Caim. 

Pode-se argumentar que a minha analogia está errada? Por que Paulo está a falar de eleição para a salvação, e de que Deus escolheu-os antes de fazerem o bem ou o mal? A aplicação da teologia de Paulo serve para todos, sem exceção, em todos os tempos. E, por isso, cabe muito bem aqui. Pois é-nos dito que Abel era justo [Hb 11.4], assim como Caim era corrupto, ímpio [Jd 11]. Ainda pode-se alegar que o tipo de oferta, se de sangue ou da terra, é que definiu o agradar a Deus ou não. Há de se lembrar que Deus aceitava ofertas voluntários de gado, ovelhas e cereais [Lv 1 e 2], nada impedindo que Caim ofertasse dos frutos da terra, anulando assim o argumento. A questão se volta então para Caim. Se o problema não foram os frutos, então a rejeição de Deus recaiu sobre ele. 

Como cristãos bíblicos, reconhecemos que Deus controla todas as coisas, visíveis e invisíveis, inclusive a nossa vontade; portanto Abel e Caim cumpriram o eterno propósito divino de conduzir a história em perfeição e sabedoria, a seu termo, segundo a vontade e o decreto eterno de Deus. Não importa se Deus lhes entregou regras de como ofertar; nem se Abel sabia e Caim não. Isso é irrelevante, pois não invalida em nada a decisão de Deus se agradar de um e não se agradar do outro. O texto quer deixar evidente e nos assegurar de que Deus se agradou de Abel e não se agradou do seu irmão. 

Pausa.
Caim poderia ter aprendido uma grande lição, a de como se submeter a Deus; de como se sujeitar; de, seguindo o exemplo do seu irmão, Deus se agradar dele. Porém, em seu orgulho e tolice, ele se irou fortemente, ao ponto de descair-lhe o semblante [v.5]. Estava nítido o desagrado de Deus para consigo, e o Senhor lho manifestou. Bastaria reconhecer o seu erro e fazer a coisa certa dali em diante [o que confirma a irrelevância das regras, nesse caso].

Ao matar o seu irmão, Caim como que queria dizer ao Senhor: “Não se agradou da minha oferta? Nem de mim? Agora terá de se contentar, pois não terá outra a ser-lhe oferecida; não há mais Abel, nem o sacrifício de Abel, ambos morreram. Ou se agradará de mim ou de mais ninguém”. De certa forma Caim queria que Deus se adequasse ao seu padrão moral, demonstrando não estar disposto ao contrário.

Após o assassinato, Deus perguntou-lhe sobre Abel. Caim disse: "Não sei; Por acaso sou guardador do meu irmão?" [v. 9]. Além de homicida, ele se tornou mentiroso; demonstrou arrogância, irreverência, petulância e um tom desafiador. Como está escrito: “Um abismo chama outro abismo” [Sl 42.7]... Caim experimentou, em sucessão,  várias formas de pecado a partir do orgulho de não reconhecer a vontade divina, e de que o afrontara com a sua iniquidade. E este é outro assunto a ser abordado, o fato de que Deus é quem define o pecado. Ele estabeleceu o padrão moral a ser seguido e o imoral a não ser seguido. Desta forma, Caim não está isento da responsabilidade, pelo contrário, ele é o responsável por Deus não se agradar da sua oferta, da mesma forma que Abel foi responsável por Deus se agradar da sua. Uma coisa que temos de entender é que a autoridade divina é a única a estabelecer o que é e o que não é; o que tem de ser feito e o que não tem ser feito; quem é justo e injusto; e ninguém pode inquiri-lo sobre isso, ou acusá-lo, sob pena de acumular delitos contra si mesmo.

Caim queria ser aceito, e não aceitou um não como resposta; não reconheceu seu erro, e de que não procedera corretamente, pois não foi admitido por Deus exatamente por não fazer o bem, antes o pecado estava a bater-lhe à porta, como lhe foi dito, e sobre o seu desejo de proceder mal deveria ter dominado [v.7]. Mas sabemos que o coração ímpio é incontrolável em buscar o mal [Pv  21.10]; por isso, de uma forma obstinada, Caim queria ser justificado, mas é Deus quem justifica [Rm 8.33]. Em sua dureza e cegueira, cobiçou a honra que não podia obter por seus próprios meios; fez-se provocador; culminando em receber a justa condenação de Deus: “Agora maldito és tu desde a terra... quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra” [v.11,12]. Caim se tornou em um homem sem arrependimento, sem amor, sem temor, e por isso foi expulso de diante da face do Senhor [v.16].
Fim da pausa.

Ainda fica a dúvida: Mas Deus não seria injusto por rejeitar a oferta de Caim, sem lhe mostrar o padrão que o agradaria? Nesse caso Caim não seria desobediente, não poderia fazer nada a respeito. Porém, a questão não é se Caim obedeceu ou não, mas se Caim agradou ou não a Deus. E não agradou; mas coube a Abel satisfazer ao Senhor, mesmo desconhecendo também o padrão que o Senhor desejava. Importa-nos saber que Deus não aprovou a sua oferta; importa-nos saber que Deus não aprovou a Caim, antes mesmo de desaprovar a oferta, pois como diz o texto: "Mas para Caim e para a sua oferta não atentou"[v.5]. E, no final, é isso que conta. Pois assim Deus se agradou de Abel e não do seu irmão; de tal forma que Abel, desde antes do seu nascimento estava predestinado a ser o pastor de ovelhas [tipo do Senhor Jesus em sua morte de sangue também] e a sacrificá-las, e a tomar-lhes a gordura, e oferecê-la aprazivelmente a Deus. Da mesma forma que predestinou Caim a ser um lavrador, a tomar dos frutos da terra para ofertar ao Senhor, irar-se, matar o seu irmão, ser amaldiçoado por Deus, e apascentar a si mesmo, seguindo o mesmo caminho do maligno.

Este é um exemplo bíblico de predestinação; revelando o poder divino de, segundo a sua vontade, operar na vida, como também na morte.

Nota: [1] Agradeço a irmã Joelma Rocha, do blog "Verdade no Coração" pelas dicas que me ajudaram a desenvolver o tema.
[2] Seguindo esse raciocínio, caso Abel fosse oleiro e Caim um caçador, as suas ofertas respectivamente seriam um vaso e um animal abatido. E, nesse caso, quem agradaria a Deus?