segunda-feira, 25 de junho de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 30: A bondade de Deus e o Salmo 23



Por Jorge Fernandes Isah


A bondade de Deus está manifesta não em ele nos livrar das lutas, dores e tristezas do mundo, mas no fato dele nos manter em paz mesmo nas tribulações, de permanecermos confiantes quando tudo está desmoronando ao nosso redor, de nos manter dispostos a lutar ainda que estejamos fracos, de resistir ao pecado e à incredulidade quando as dúvidas nos assolam. Deus é supremamente bom ao estar sempre conosco, sem jamais nos abandonar, mesmo quando nos sentimos perdidos e sós. Como está escrito: “Provai, e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem que nele confia” [Sl. 34.8].

A bondade de Deus em dar bens materiais ao homem pode ser percebida por qualquer um, mas mais do que isso, a sua presença, e estar diante dela, é que o torna essencialmente bom para com os seus filhos. Veja bem, a bondade de Deus não está naquilo em que ele dá, mas naquilo que ele é, e sendo, transfere e participa aos que escolheu participar. Deus é bom, do ponto de vista humano, por suprir nossas necessidades, por nos dar a vida, saúde, livrar-nos do mal, mas o ápice da sua bondade é nos fazer semelhantes ao seu Filho Amado, Jesus Cristo, o qual é bom.

No Salmo 23, o rei Davi compôs um hino de amor e gratidão a Deus por seu cuidado, providência, vigilância e eterna presença, que mesmo nas agruras, perseguições e dificuldades da vida, ele jamais se sentiria desamparado, antes tinha a certeza de estar protegido por Deus. O profeta reconhece esse atributo maravilhoso do Senhor, de que ele é bom. Através de imagens inspiradas e que remetem ao conforto, refrigério da nossa alma, e à certeza do zelo divino para com os seus filhos, temos uma doxologia à sua bondade.

A presença constante e incessante de Deus em nossa vida é o que o faz bom. De uma bondade especial que somente pode ser sentida por aqueles aos quais ele se entrega. Por isso, digo sempre que a maior dádiva de Deus para conosco é ele mesmo se entregar a nós, de uma forma tão maravilhosa que é impossível não recebê-lo como o favor máximo, majestoso e esplêndido que se pode ter. Sem mérito algum de nossa parte, Deus se entregou por nós e cuidou que o aceitássemos como o dom, o presente, insuperável.

É também um cântico de confiança, em que Davi demonstra conhecer profundamente aquele em quem depositou a sua vida. E isso nos leva a crer que somente aqueles que conhecem a Deus podem confiar nele; de forma que Deus se revelará apenas aos que ele conheceu eternamente. Este Salmo é completamente dedicado à bondade de Deus, em suas várias formas de se manifestar na vida daquele que foi feito santo pela obra de Cristo.

A ideia da presença do Senhor na vida do servo é constante. E aqui, ao que parece, Davi estava em uma posição difícil, provavelmente cercado por inimigos, numa situação de morte iminente, em um “beco-sem-saída”. E, ainda assim, ele foi capaz de compor este hino, glorificando a Deus, que é bom.

“O Senhor é o meu pastor, nada me faltará”.  Temos a imagem de Deus como um pastor, aquele que cuida e protege as suas ovelhas, suprindo-as em tudo. Davi não somente se utilizou de uma forma poética ou retórica, mas quis dizer exatamente o que disse: o Senhor é o meu pastor; e, assim, reconheceu o cuidado de Deus para com ele, e de que era fruto da sua bondade. Somente quem é bom pode suprir o outro em tudo, e essa é uma característica que somente Deus tem, pois somente ele é capaz de saciar a necessidade mais básica do homem [se é que há alguma necessidade que se possa chamar de “básica”] até a mais exigente, sendo que em todas elas pouco ou nada podemos fazer para colaborar.

Infelizmente as pessoas têm apenas uma idéia material e imediatista deste verso. Não há nada de errado nisso, mas o erro está em se pensar apenas nisso, de que Deus é capaz somente de suprir nossas necessidades materiais. Mas ele cuida de nós de forma total, completa, sendo que as maiores necessidades do homem moderno não são materiais, mas da alma. De forma que ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres, adultos e crianças, encontram-se enfermos, e a cura somente é possível através do Bom Pastor, Jesus Cristo [Jo 10].

“Deitar-me faz em verdes pastos... “. É uma imagem bucólica, tranqüila, reconfortante. Dando-nos uma ideia de segurança, de certeza em descansar mansamente sob os cuidados sublimes do bom Deus. Novamente, somente aquele que é bom pode dar ao outro a serenidade, a pureza e o descanso seguro.

“Refrigera a minha alma; guia-me...”. Mais uma vez, temos a imagem do descanso, o que nos faz lembrar do que nos disse o Senhor Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” [Mt 11.28-30]. Cristo é ao mesmo tempo aquele que nos refrigerará a alma, mas também ele é o caminho da justiça, as veredas da justiça, pelo qual fomos feitos justos e capazes de trilhar no terreno da justiça. Morrendo por nós, na cruz, ele se fez justiça para que fôssemos justificados e feitos justos diante de Deus. E Cristo se torna, assim, o nosso duplo descanso pois, ao descansarmos nele, descansamos de nós mesmos, e da nossa busca impossível pela justiça meritória.

“Ainda que eu andasse no vale da ...” O que é a morte? Durante muitos anos, décadas, fui afligido com a ideia da morte. Ela sempre me perseguia, como um inimigo a me fustigar intermitentemente, desde a mais tenra idade. Precisei muitas vezes me embriagar para conseguir dormir. A morte é uma certeza na vida, de que todos, um dia, morreremos. Porém há uma diferença: aquele que confia no Senhor não a teme, porque sabemos que ela não nos pregará surpresas, pois Cristo venceu-a, dando-nos a vitória [1Co 15.55-57]. O que mais me incomodava era a incerteza que a morte traria: se havia vida pós-morte, como seria essa vida, e em que condições eu a desfrutaria, se é que a desfrutaria. A morte, em si mesma, era uma conhecida, mas o que ela traria de conseqüências é que me atormentava. Essa ideia não mais existe. Com isso não quero dizer que a morte não possa trazer sofrimento e dor, mas de que Deus nos capacitará a atravessá-la de uma maneira confiante, porque ele estará sempre conosco, e o seu consolo estará presente, mesmo no momento mais doloroso e sofrido que se possa ter na morte.

A imagem de vara e cajado alude à disciplina, à correção, de forma que possamos ser conduzidos no bom caminho, aprimorados na santidade, e certos de que aquele a quem o Pai corrige esse ama, e se ama, a sua bondade está derramada sobre ele; e ainda que a correção não pareça ser uma alegria mas tristeza, o seu exercício produz um fruto pacífico de justiça [Hb 12.11]. 

Mas o profeta nos revela também que Deus nos chama, como o melhor anfitrião, a assentarmos na mesa para o banquete que ele nos preparou. Revelando-nos que somos íntimos de Deus, e nela, ele se alegra em agradar-nos com mais do que a comida e a bebida, mas com a sua presença. Os preparativos do banquete são provas da bondade divina, do seu cuidado e zelo, mas mais do que isso, ela nos remete à sua presença, à essência e à natureza santa, bondosa e perfeita do ser divino. Que pode ser reconhecida por qualquer um, em princípio, mas que é rejeitada pela maioria dos homens em sua insistente ignorância de se considerar autossuficiente e em um permanente estado de alienação, de rejeição da verdade. Para isso, se apegam à falsa realidade; à ilusão que não os deixam escapar da prisão que se autoimpõe.  

E é nesse contexto que a igreja tem um papel fundamental, como emissária da boas-novas, de que há cura para o sofrimento humano. Podemos agir de duas maneiras, as quais se complementam: a primeira, é suprindo as necessidades imediatas das pessoas, ajudando-as naquilo que lhes faltam. Mas não podemos nos esquecer de que a barriga cheia logo se esvaziará, e precisará novamente de algo que a preencha. E não devemos nos furtar a sempre estarmos atentos a cumprir a missão de auxiliar o próximo materialmente.

Contudo, não podemos nos esquecer de que a barriga cheia atenuará apenas uma parte do sofrimento humano, e, provavelmente, a parte menos significativa do homem. O Evangelho tem o poder de alimentá-lo e sustentá-lo naquilo que ele tem de mais importante e mais urgente: o seu relacionamento com Deus. O pecado, e a condição do homem de pecador, ainda que ele resista a admitir, sempre o deixará em constante angústia. O fato de muitos não pensarem nisso, de negligenciá-lo, é usado como um recurso para não se sofrer. Mas é um engano ao qual o homem é levado pelo pecado. Ele, esteja-se consciente ou não, sempre manterá o homem em angústia e sofrimento. O próprio fato de sustentá-lo em sua voracidade, com as conseqüências naturais que ele provoca, é a prova de que, mesmo na ostentação e na satisfação de todos os desejos materiais e carnais, o homem permanece angustiado e em sofrimento. O alívio físico não alivia a alma; mas o alívio na alma, o refrigério que Davi nos mostra, e somente possível em e por Cristo, é capaz de nos fazer compreender que a corruptibilidade da carne é algo aceitável, ainda que fruto da desobediência e do pecado, o que nos deve entristecer, mas que uma alma restaurada pelo poder de Deus resultará em um corpo incorruptível. O corpo saudável e que se deteriorará não pode garantir a saúde da alma, mas a alma saudável, transformada por Deus, assegurará um corpo igualmente saudável, transformado à semelhança do corpo do nosso Senhor.

E não é interessante que essa seja a resposta para a aflição humana? E de que, somente assim, podemos verdadeiramente ajudar e auxiliar os necessitados? Sejam eles materialmente ricos ou pobres? Porque o problema maior do homem não é o material mas o espiritual. Davi, cercado, ameaçado por seus inimigos, prestes a sofrer o ataque, encontrava-se me paz, no descanso que somente Cristo pode dar.

Devemos ajudar as pessoas como conseqüência de uma fé viva, mas sem jamais nos esquecer da mensagem do Evangelho, o qual cura a alma doente; e que se assim permanecer, doente, jamais ocupará um corpo são.

Mais uma vez repito, Deus é bom não naquilo que ele simplesmente dá, mas ele é bom em si mesmo, e isso é o que ele nos dá, a si mesmo, porque ele é bom. Sobretudo, somente quem o conhece pode reconhecer a sua bondade; e essa é a prova maior da bondade de Deus, deixar-se revelar e conhecer até pelo mais mísero pecador, ao ponto em que, cada um de nós, se alegre em reconhecer e dizer que Deus é "o meu Senhor e o meu Pastor".

Pode-se ter quase tudo ou pode-se ter quase nada, mas se você conhece a Deus e confia nele, você tem tudo.  

Notas: 1 - Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico em 20.05.2012
2 - Baixe esta aula em file.MP3

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 29: A bondade de Deus no mundo injusto



Por Jorge Fernandes Isah


Pergunta: Por que a igreja prega, hoje, o Novo e não prega o Antigo Testamento?

INTRODUÇÃO E O “MOVIMENTO DESCONTINUÍSTA”
Este é um questionamento que quer dizer, nas entrelinhas, haver um Deus no AT e outro Deus no NT. Mais explicitamente quer dizer que o Deus do AT é mau, enquanto o Deus do NT. é bom e, com isso, desprezar aquele, como parte de um mito criado pela nação de Israel a fim de justificar seus atos. Mas quais seriam os critérios para que se possa chegar a esse entendimento?  Há algum fundamento que possa levar a essa compreensão?

Na verdade, essa diferença não existe. Sabemos que Deus é um só, e que ele tanto se manifesta no AT quanto no NT, sendo o mesmo Deus. Ocorre que ele se revelou ao homem de maneira progressiva no decorrer da história; contudo sem alterar o seu Ser imutável [desculpe-me a redundância; o que é imutável, por si mesmo, não pode mudar. Mas a ênfase foi proposital]. Deus se apresenta de uma forma, podemos dizer, pedagógica, face à nossa limitação e incapacidade de compreendê-lo plenamente; pois como pode o imperfeito entender o perfeito? E o temporal o eterno? E pecaminoso o santo? Apenas pela sua bondade é que nos foi dado conhecê-lo, dentro dos limites que ele mesmo estabeleceu para que acontecesse. De forma que, pouco a pouco, nos mostra quem é, e qual a obra está a realizar neste mundo. Ainda que essa revelação seja limitada, é por demais grandiosa, maravilhosa e sublime para que a apreendamos totalmente.

Outro ponto no qual os proponentes da descontinuidade do AT em relação ao NT falham é que essa visão somente pode existir por causa de pressupostos falsos, com o objetivo de se chegar a conclusões tendenciosas e antibíblicas. Ao ponto de considerarem como divino apenas as palavras do Senhor Jesus nos Evangelhos, ainda assim com uma série de restrições. Mas, se Cristo não escreveu ele próprio suas palavras, por que duvidam dos demais escritos? Não foram Mateus, Marcos, Lucas e João os seus autores? Que garantia têm que as palavras proferidas pelo Senhor foram ditas por ele? É algo que nem eles mesmos conseguem explicar. Ainda mais se levarmos em conta que Cristo, em momento algum do seu ministério, questionou, rejeitou, anulou ou desmentiu o AT, pelo contrário, fez inúmeras citações de versos contidos nele. Logo, o que se tem é a má-fé e incredulidade desses homens, os quais se fazem juízes para julgar o que não lhes é permitido nem capacitado julgar: Deus e sua palavra. Novamente, é um caso de arrogância, ignorância, presunção e ceticismo. Afinal, já nos primórdios da Igreja, homens como Marcião e Manes propuseram exatamente o que hoje se pode chamar de “movimento descontinuísta” [não sei se o termo já existe, mas se não existe, está criado], rejeitando boa parte das Escrituras unicamente com o intuito de respaldar suas loucuras. Essa é a mesma tática utilizada pelo “TJ’s” também, mas o interessante é que, sejam os heréticos primitivos ou modernos, nunca encontrarão na Bíblia os fundamentos para os seus díspares e ofensivos ataques a Deus. Ao se defender alguma parte do texto sagrado em detrimento de outros, não se defende nada além do próprio pecado. Ao rejeitarem-se partes como mera manifestação humana e não-sobrenatural, escolhendo aqui e acolá o que aparentemente sustentaria os seus interesses, acalenta-se a iniqüidade, arrastando da consciência qualquer perspectiva de se chegar à verdade. Assim agem os sábios deste mundo, os quais Deus chamou loucos.

Quando não se reconhece Deus no AT e no NT, como sendo o mesmo Deus, não se está rejeitando apenas os trechos que a mente limitada, imperfeita e pecaminosa não quer reconhecer, mas essa mente está a rejeitar o único e verdadeiro Deus. Porque Deus não muda, assim como a sua palavra. E o que temos é o que já disse muitas vezes antes, o homem voltando ao Éden, um retorno ao antigo pecado que levou à morte toda a humanidade, acreditando possível tomar o lugar de Deus ou ser como ele. Quando esse mesmo homem profere suas blasfêmias contra Deus e sua palavra, ele simplesmente está tentando se fazer de Deus, e como qualquer imitação mal-feita apenas realçará as virtudes e qualidades do original e verdadeiro. O homem, em sua manifestação ostensiva de arrogância, ao pretender julgar a Deus mostra-se cada vez mais injusto ao fingir ser o que jamais será. Pensando-se especial, o homem revela a sua indignidade; acreditando-se auto-suficiente, revela a sua insuficiência; exibindo a auto-estima, mostra-se invejoso e pusilânime; procurando a glória, desperta apenas a repulsa. É esse homem que se faz de juiz, e quer questionar o Todo-Poderoso. E, como Paulo argüiu o tolo do seu tempo, pergunto: Quem és tu, ó homem, que a Deus replicas?

Ao contrário, todos os homens deveriam fazer como o salmista, e louvar o Senhor, “porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” [Sl 106.1].

AINDA SOBRE DEUS E A INJUSTIÇA
Há outro tipo de incrédulos, aqueles que sempre estão a acusar Deus de injusto, posto ter criado um mundo injusto. Esse também é um questionamento gnóstico, com o qual os apóstolos tiveram de combater a seu tempo, e que redundou no dualismo. Eles são os “descrentes intermediários”, enquanto os que dizem não haver Deus, pois sendo bom e justo, como explicar a maldade e a injustiça, seriam os “descrentes derradeiros”. Mas proporiam eles a verdade? A maldade e a injustiça somente podem ser imputadas a Deus? E caso possam imputá-la, ele não existe?

Há duas coisas a serem levantadas na questão:

A primeira é de que Deus criou todas as coisas, e considerou-as boas. Já disse que o fato de Deus considerá-las boas não as tornam perfeitas, pois se fossem perfeitas seriam uma reprodução do próprio Deus. Nesse sentindo, nada é perfeito. Mas se o perfeito significa que elas não tinham defeitos e estavam em ordem, acredito que se possa utilizar o termo. Contudo, é sabido que se o homem, e mesmo a natureza, não fosse originalmente criado com a possibilidade de queda, de pecado, de morte e corrupção, nada disso aconteceria. Logo a possibilidade teria de existir para que elas pudessem se manifestar. Deus não criou o pecado, nem o mal, mas em seu projeto eterno havia essa possibilidade, não como algo que viesse ou não a ocorrer, e que aconteceu à revelia divina ou por conta das contingências na história, mas como algo real no “mundo das possibilidades”... Ficou difícil entender?... Para que tudo exista e se torne real é necessário que exista no “mundo das possibilidades”.

Tentarei uma analogia. Dois homens estão à margem de um rio. Existe uma ponte ligando as duas margens, mas também se pode alcançá-las a nado. Há as duas possibilidades de se chegar à outra margem. Um dos homens decidiu atravessar a ponte, enquanto o outro resolveu nadar. Mas tanto uma como a outra, para existirem, teriam de ser criadas por processos que culminassem na sua realidade. A ponte seria primeiramente projetada, em seguida os materiais comprados, os trabalhadores selecionados, etc, somente então, se iniciaria a construção. E somente depois de concluída, existiria. Mas mesmo depois de pronta, ela teria de ser mantida em perfeito funcionamento, a fim de assegurar a sua funcionalidade. A ponte foi um projeto criado a partir de um desejo ou necessidade, que a levou a existência. Da mesma forma, para que o homem atravessasse o rio a nado, teria primeiramente de existir e, depois, aprender a nadar. Também fruto de um desejo ou necessidade. De tal forma que nem a ponte nem a técnica de nadar existem por acaso, fortuitamente [mas para além de tudo isso é necessário que o rio exista]. Se não houvessem essas possibilidades teríamos reduzidas as chances de se atravessá-lo, ainda que se pudesse dispor de outros meios para a travessia: um barco, uma balsa, um tronco de árvore ou em qualquer outro artefato apropriado para sustentar um homem sobre as suas águas. Mas seja qualquer um deles, teria de haver o desejo ou a necessidade que os levasse a existir.

Contudo, não existe a possibilidade do homem chegar à outra margem voando como um pássaro ou flutuando. No “mundo das possibilidades” não há homens com a capacidade de voar, inerente a si mesmo, sem o auxílio de equipamentos e instrumentos. Com isso, estou dizendo que algo somente existirá se houver a possibilidade de existir, pois se não houver, é impossível que exista; logo, ele jamais existirá.

Usei toda essa exposição para dizer que o homem foi criado com a possibilidade da queda, de forma que não haveria a possibilidade de não cair. O homem foi criado “caível”, o que redundou na sua queda real. Por mais que a idéia não seja agradável, ela está em conformidade com o que a Bíblia nos revela acerca da vontade divina, de que ela é única, e infalivelmente acontecerá. Em outras palavras estou a dizer que tudo existe somente pela vontade de Deus, por aquilo que é possível no “mundo das possibilidades divinas”. O fato de não pertencer a ele é sinal de que nunca existirá, pois não existe como possível, mas como impossível.

Alguém pode alegar que Deus é o Deus do impossível, e isso é verdade como possibilidade. Ele pode fazer tudo sem qualquer restrição, a não ser a da sua vontade. Por exemplo, João o Batista disse aos fariseus que Deus poderia fazer das pedras filhos de Abraão. Com isso, ele afirmou que tudo é possível para Deus, mesmo as coisas impossíveis e improváveis, porém, não se vê pedras transformadas em filhos, posto Deus não querer filhos dessa forma, ainda que ele transforme o nosso “coração de pedra” em coração de carne, sem o que ninguém será filho. O que o profeta disse não pertence ao “mundo das possibilidades” de Deus, pois uma mente perfeita e santa como a dele não cogitaria algo que fosse contrário ao seu propósito. O Senhor fará tudo conforme a sua vontade, e não simplesmente por querer nos mostrar que é capaz de fazer. Interessa-o revelar a sua vontade; e por ela devemos entender que há uma “limitação” que se transfere ao seu plano e à sua execução. Deus não pode fazer o que não quer, logo, o que ele não quer não existirá, nem mesmo como possibilidade [uso o termo aqui como probabilidade]. Nenhuma força age sobre Deus além de si mesmo, estando sujeito apenas e tão somente à sua consciência. Como Deus santo, justo e perfeito, muitos aspectos, tanto do seu ser, como da sua vontade, como da sua obra, nos são incompreensíveis. Sabemos que o mal e a injustiça existem, e somente existem porque fazem parte do plano divino, de que na sua mente eles são “possíveis”, e somente por isso existem. Novamente quero frisar que “o mundo das possibilidades” de Deus não se refere ao que é possível como hipótese, como algo que se possa recusar ou resistir a ser, mas como algo a ser, no seu devido tempo [visto que o próprio tempo veio a ser sem chance de não-ser. Ainda que ele seja, de certa forma, parte ou elemento da eternidade. Mas sempre a partir dela, não o contrário].

Acontece que o mal e a injustiça são componentes do plano divino, a cumprir o propósito santo e perfeito de Deus. Através deles, reconhecemos que Deus é bom e justo, e através de Deus, somos exortados a rejeitá-los, evitando-os, reconhecendo-os como antíteses de Deus. Qualquer tentativa de imputar-lhe maldade ou injustiça somente revelará o quanto o desconhecemos e quão equivocados somos. Porque somos nós a praticar a injustiça, somos nós a praticar a maldade, somos nós a agir em desordem, e não Deus. Por isso, querer culpar a Deus é o mesmo que tampar o sol com a peneira: a culpa é e sempre foi toda e completamente nossa.

E este é o segundo ponto da questão. Foi o pecado de Adão o gerador para que o mal e a injustiça, assim como o caos, entrassem na criação. Não podemos lançar essa culpa nem mesmo sobre satanás, pois não foi ele quem pecou esse pecado, mas o homem. Satanás foi um componente sedutor, que deu ao homem exatamente o que ele queria e desejava, um empurrãozinho em direção à desobediência, à ilusão de que poderia ser Deus. Mas, convenhamos, sem querer ser “advogado do diabo”, não foi satanás quem pecou esse pecado, ainda que também tenha sido punido por ele. Querer eximir o homem dessa responsabilidade é uma fraude. O diabo não tomará o nosso lugar, tornando-se fiador, pois ele tem muito que responder por si mesmo. Tentar, desesperadamente, imputar a culpa a Deus, é o ápice do insensato. Não resta outra coisa a não ser reconhecer o pecado, e de que necessitamos desesperadamente da graça, misericórdia e favor de Deus para não sermos condenados. O arrependimento, confessando a nossa condição pecaminosa, e de afronta a Deus, é a única forma de trazer ordem e paz à nossa condição miserável e odiosa. Reconhecendo o sacrifício de Cristo na cruz, o justo e santo tomando o lugar dos injustos e pecadores, porque nós, e não Deus, estamos nesta condição de miséria. E somente pelo sangue do Cordeiro, derramado em favor daqueles que Deus amou eternamente, pode limpar-nos de todas as transgressões. O mal e a injustiça têm a função de nos revelar o que somos, de nos mostrar aquilo em que nos tornamos, e a premência de, em Deus, sermos feitos santos e imaculados. De forma a cada vez mais termos a consciência de quanto mais próximos dele, mais distantes do mal, e quanto mais distantes de Deus, mais rapidamente voltamos ao próprio vômito.

Outra questão evocada por este debate é o da inspiração divina do AT. Muitos justificam o fato de não reconhecerem-no porque ele está repleto de sangue e injustiças, e, muitas delas, segundo eles, ordenadas pelo próprio Deus. Ora, tamanha má-fé de quem faz tais proposições é digna de morte. Apelam sempre para a inocência das pessoas para rapidamente culparem a Deus; e mesmo que elas não fossem inocentes, Deus não poderia ser acusado de crime algum. A verdade é que ninguém é inocente, e todos somos merecedores de morte. Isso me parece algo tão claro, do ponto de vista bíblico e lógico, que nem é preciso tecer argumentos mais elaborados. Todos pecaram, e destituídos estão da glória de Deus, diz o apóstolo [para quem não sabe, o livro de Romanos está no NT; mas muitos não gostam de Paulo, e não dão valor aos seus escritos. Pior para quem age assim, pois é a mesma palavra divinamente inspirada escrita também por Mateus, Lucas ou João]. Apenas a bondade divina pode livrar da morte uma parte dos defuntos, mortos muito antes de virem ao mundo, dando-lhes vida, sem que haja qualquer injustiça. Pelo contrário, quando todos estariam definitivamente condenados, Deus teve misericórdia de alguns, absolvendo-os. A alegação de injustiça parte da falsa premissa de que todos os homens são dignos, e por isso, não merecem a morte. Mas quem diz isso? Normalmente o morto que não quer a vida, mas permanecer em seu estado de ruína. Que dignidade tem uma pedra? Ou um pedaço de madeira? Não os vemos clamando por dignidade. Simplesmente porque não podem, e mesmo se pudessem, não saberiam o que estão pedindo, por não entendê-lo. Pois diante de Deus, ninguém é digno, pelo contrário, todos são indignos. E se podemos triturar uma pedra até ela se tornar em pó, e queimar uma madeira até se transformar em cinzas, por que Deus não pode dispor das suas criaturas conforme a sua vontade? Se nós que não criamos nada, nem a pedra nem a madeira ou outra coisa qualquer, podemos dispor delas conforme a nossa vontade, o que nos leva a crer que Deus esteja impossibilitado de agir assim? E, agindo, quem pode acusá-lo de injusto e mau?

Mas, novamente, afirmo que essa tentativa sempre provém da mente daqueles que não reconhecem em Deus esse direito, pelo simples fato de não se disporem a reconhecer a sua autoridade e a necessidade urgente de se reconciliar com ele. Em sua soberba e orgulho se consideram tão bons quanto Deus, de forma que ele não pode agir contra a vontade do homem, ou melhor, contra os interesses dele. E sabemos o que é conveniente ao homem caído, exatamente o que ele não reconhece como sendo: a maldade e a injustiça. Somente por não constatarem em si mesmo aquilo que são, culpados daquilo que dizem não fazer mas fazem, arvoram-se à loucura de imputá-las a Deus. É o típico caso de mascaramento, de se travestir de Deus quando não passam de farsantes; e que a psicologia chama de esquizofrenia, de se criar uma falsa realidade e não querer contato com o real e verdadeiro. Não há desculpa para eles; por mais que eles não queiram também se desculpar, preservando incólume o seu estilo de vida, digo, de morte; porque o "deus-homem" jamais poderá salvar a si mesmo.

Notas: 1- Entendo que a resposta à pergunta inicial envolve uma série de questões, mas a primordial é mesmo a soberba e arrogância humanas de se fazer "Deus", a volta ao Éden. Então, não acredito necessário abordar todos os elementos decorrentes desse pecado "maior".
2- Textos analisados no áudio desta aula: Nm 14.4-20; Dt 18.9-15; Mt 25:26-30.
3- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico em 06.05.2012
4- Baixe esta aula em file.MP3