Por Jorge Fernandes Isah
1)Cristo é 100% Deus e 100% homem;
2)Cristo é uma única pessoa, não havendo duas mentes nem duas personalidades, mas apenas uma, o Verbo eterno.
3)As duas naturezas de Cristo não se misturam, ainda que se comuniquem.
4)Os atributos de uma natureza não são passados para outra natureza, fazendo com que Cristo se tornasse em um terceiro ser a partir da misturas de suas naturezas.
5)Cristo é eterno em sua divindade, e temporal em sua humanidade.
6)Cristo foi gerado em Maria, virgem, pelo Espírito Santo.
7)Cristo é descendente de Adão, assim como o é de Abraão e Davi.
8)Cristo não tem pecados, jamais pecou.
Posto o que a ortodoxia cristã advoga para o Redentor, pergunto: Sendo o Senhor descendente de Maria, Davi, Abraão e Adão, por que não herdou o pecado, nem participou da corrupção da raça humana? [1]
Alguns dirão que o fato de Maria não ser fecundada por um homem, mas pelo Espírito Santo, fez com que Cristo não recebesse a imputação do pecado original. Contudo, Maria também não é descendente de Adão? Ao que replicarão: o pecado está na semente do homem, não na semente da mulher, como parece indicar Gn 3.15. Em outras palavras, esse argumento afirma que a semente da mulher, isoladamente, não tem o pecado, o qual está presente na semente do homem. Como são necessárias as duas sementes, o óvulo, feminino, e o sêmen, masculino, para se ter o ovo ou zigoto [2], Cristo não herdou o pecado por não ser gerado natural mas sobrenaturalmente. Porém, fica a questão: o fato de Cristo ser gerado pelo Espírito, por si só não o tornaria essencialmente diferente do homem?
Não consigo entender porque Cristo teria de ser Ipsis litteris como homem para que sua obra na cruz fosse eficaz. Ele tinha de ser igual a nós em tudo para ser real? Mas real em qual aspecto? No aspecto imperfeito herdado de Adão? Ou na perfeição existente em Si mesmo? O fato de não ser imperfeito o torna em um homem irreal? Ou a sua humanidade perfeita faz dele o homem perfeito?
O fato de não ter pecado, nem ter a possibilidade de pecar, o torna essencialmente diferente do restante da humanidade. E dizer que, em algum aspecto, Cristo pudesse pecar ou sujeitar-se ao pecado [hipoteticamente falando], implicaria na possibilidade de Deus pecar, o que é absurdo, e se opõe frontalmente à Escritura. Entender os textos que dizem que Ele em tudo foi tentado como nós, como uma possibilidade de pecar, significa que poderia, a qualquer momento, ceder à tentação, e por si só lançaria por terra o princípio de que Cristo é o santo de Deus [Mc 1.24;Lc 4.34]. É como se quiséssemos, meio à forceps, deter uma mínima, irrisória, participação na salvação. Chamar a atenção para nós mesmos, como se algo de bom em nós existisse em Cristo. Como a dizer: "se não houvesse a parcela humana em Cristo, não haveria salvação". De certa forma, esperamos exaltar-nos, ainda que inconscientemente, na salvação que é completamente divina, e procede somente de Deus. É o que diz o profeta: "Do Senhor vem a salvação" [Jn 2.9]. Como disse Arthur Pink:
"The humanity of Christ was unique. History supplies no analogy, nor can His humanity be illustrated by anything in nature. It is incomparable, not only to our fallen human nature, but also to unfallen Adam’s. The Lord Jesus was born into circumstances totally different from those in which Adam first found himself, but the sins and griefs of His people were on Him from the first. His humanity was produced neither by natural generation (as is ours), nor by special creation, as was Adam’s. The humanity of Christ was, under the immediate agency of the Holy Spirit, supernaturally "conceived" (Isa. 7:14) of the virgin. It was "prepared" of God (Heb. 10:5); yet "made of a woman" (Gal. 4:4.) [3].
Porém, o pecado de Maria persiste, a menos que se faça como os católicos e se defenda a sua não-pecabilidade. Mas a Bíblia não afirma isso, pelo contrário, diz que todos pecaram, sem distinção [Rm 3.23], e de que apenas Cristo jamais pecou [Hb 4.15]. Então, do ponto de vista bíblico, como seria possível Cristo, sendo homem, não herdar o pecado original?
Há a necessidade de se definir o pecado original, e de que forma, biblicamente, é transmitido. “Pecado original significa o pecado derivado de nossa origem, não é uma expressão bíblica (foi Agostinho quem a cunhou), mas é uma expressão que traz a uma proveitosa focalização a realidade do pecado em nosso sistema espiritual” [4]; ou ainda: "o estado e condição de pecado em que os homens nascem" [5], em outras palavras, o pecado original é algo que não somente nos distingue de Cristo, mas algo que vai muito além, impossibilitando-o de ser igual a nós. Assim, entendo que o pecado não é algo passado de pai para filho, na fusão dos elementos reprodutores do homem e da mulher. Por isso a distinção acima sobre semente não procede como argumento para Cristo não herdar o pecado. Adão, ao cair, representou a raça humana no Éden, de tal forma que todos os homens, sem exceção, caíram juntamente com ele. Todos os homens estavam em Adão [e também as mulheres, claro], o qual foi o cabeça da raça humana, de tal forma que toda a humanidade estava nele, participando do seu pecado, e assumindo a culpa advinda dele. Por isso todos caíram, e morreram juntamente com Adão: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” [Rm 5.12]. Deus nos considera tão responsáveis por esse pecado quanto Adão, de tal forma que nascemos “mortos em ofensas e pecados” [Ef 2.1], mesmo quando ainda não cometemos efetivamente nenhum delito. Ele está em nosso coração como uma disposição natural, como algo intrínseco à natureza humana, apenas à espera para manifestar-se; algo latente que acontecerá a seu tempo, sem chance de não ocorrer, a menos que não haja tempo [como na morte de bebês prematuros].
A pergunta inicial está a reclamar uma resposta: Por que Cristo não herdou o pecado?
Há quem diga que o fato de Cristo ser Deus, anulou a herança do pecado. Como Deus não pode pecar, sendo santo e perfeito, a humanidade do Redentor tornou-se imune pela impecabilidade divina. Porém... Se as suas duas naturezas não se misturam, como é que a divina “anulou” na humana o pecado federal? Se elas não se misturam, como o pecado original não foi transmitido a Cristo? Há duas hipóteses, ao meu ver:
1) Cristo não herdou sua humanidade de Maria. Desta forma, o Espírito Santo foi quem gerou o homem Cristo, apossando-se apenas da carne, do físico doado por Maria. É o que parece dizer o anjo: “José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo” [Mt 1.20]. E a resposta que ela recebeu ao questionar o anjo: “Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” [Lc 1.34-35].
2) Cristo sempre teve a natureza humana, como essência. O que foi gerado em Maria foi o corpo, a parte material do Senhor.
Sendo essa a minha opção predileta, primeiro, definirei o que entendo por essência, conforme o dicionário Michaelis:
Essência: sf (lat essentia) Natureza íntima das coisas; aquilo que faz que uma coisa seja o que é, ou que lhe dá a aparência dominante; aquilo que constitui a natureza de um objeto.
Compreendo que o homem é um ser completo, carne e alma [6]. Porém, entendo que a humanidade está presente na alma, usando o corpo como dispensário ou habitáculo. Desta forma, o pecado age na alma, e é ela que precisa de regeneração. Quando Adão pecou, a morte veio como conseqüência da transgressão da Lei divina, da ordem expressa de Deus: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente, morrerás” [Gn 2.17]. Na desobediência do homem, encontramos dois tipos de morte: a física e a espiritual. A física, fez do corpo corruptível, o qual voltará à terra, como está escrito: "No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” [Gn 3.19]. A espiritual, causou a separação do homem de Deus; ele perdeu a comunhão com o Criador, de tal forma que foi necessário reabilitá-lo através do sacrifício de Cristo na cruz, o qual pagou os pecados do seu povo, expiando-o, justificando-o diante de Deus [Hb 2.17]. Por sermos descendentes de Adão, automaticamente fomos representados por ele no Éden, e recebemos a maldição do pecado: as duas mortes.
Cristo, ao receber os pecados do seu povo, por imputação, morreu fisicamente, pois é-lhe impossível morrer espiritualmente, visto ser Deus. Para Cristo, não há morte espiritual, apenas física. Da mesma forma, os eleitos, aqueles que foram ligados eternamente a Deus na temporalidade, pela obra de Cristo, também não morrem mais espiritualmente, mas apenas em sua corporeidade. Porque “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus ” [Ef 2.5-6]. Ora, alguém que estava morto e foi vivificado pode morrer novamente? Especialmente se foi vivificado em Cristo? Se foi ressuscitado nEle? Se está assentado nos lugares celestiais com Ele? O que nos impede de desfrutar completamente desta obra de Deus são exatamente duas coisas: a temporalidade, estarmos no tempo, e o corpo, que precisa cumprir o castigo de morrer em sua corruptibilidade.
Alguém poderá pensar: "mas esse seu argumento não se parece com o gnosticismo dos primórdios da igreja? Quando o corpo era visto como mau?". Responderei, enfático: Não! Porque, como disse, o pecado afetou o homem por completo, mas ele age na parte imaterial primeiramente, e o corpo é tão somente o veículo pelo qual ela se manifestará. O corpo, por si só, não decide pecar. A alma é que impulsionará o corpo, controlando-o, ordenando-o para o pecado. A alma é que precisa de regeneração, de ser vivificada; é ela que se encontra morta, separada de Deus. O corpo, enquanto suas funções biológicas não cessarem, permanecerá vivo, ainda que a alma esteja morta. O inverso acontece quando a alma é vivificada por Cristo; ela permanece viva mesmo com o corpo morto. O Senhor, por algum momento, após a encarnação, permaneceu sem corpo. Do instante em que a vida expirou-se na cruz até a ressurreição, por três dias, Cristo permaneceu Deus-homem, mesmo não tendo um corpo. Se a natureza humana fosse dependente em sua existência do corpo, como essência, Cristo teria deixado de ser homem, permanecendo apenas Deus. Para, depois da ressurreição, voltar a ser Deus-homem. Porém, isso é possível? Teria Ele novamente sido gerado?
Um trecho que me chama a atenção é: “O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é o primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais” [1Co 15.45-48]. Há clara e nitidamente uma diferença entre Adão e Cristo, o primeiro e o segundo homens. Mas, o que Paulo quer dizer com terreno e terra, celestial e céu? Os lugares de onde saíram? Ou há também uma transposição de características que são evidenciadas pelos termos? Por exemplo, o fato de Adão ser da terra revela a sua condição temporal, imperfeita, pecaminosa e finita, enquanto o fato de Cristo ser do céu representa que é santo, perfeito, eterno e infinito, mesmo em sua humanidade, do contrário, se a humanidade de Cristo for terrena, como será perfeita? Por isso, o apóstolo não se refere a Cristo como terreno, ainda que o seu corpo o fosse.
O que me leva à conclusão de que, para que o pecado não fosse herdado por Cristo, era necessário que a sua humanidade também não fosse herança do primeiro Adão, de tal forma que o corpo permanecesse incontaminado. E a prova de que não foi contaminado é que o seu corpo não viu a corrupção. Contudo, fica a pergunta: se o corpo de Cristo não foi contaminado nem viu a corrupção, por que morreu? Não é essa a conseqüência natural do pecado? Sim. Mas o pecado que levou à morte física de Cristo não foi dEle, mas nosso; por causa dos pecados do seu povo que lhe foram imputados, sobreveio-lhe como punição a morte, sem que houvesse a corrupção da carne. Ele teve de cumprir toda a condenação que nos era devida, para nos livrar da pena que nos seria imposta, caso não se sacrificasse em nosso lugar.
Ao assumi-la, a corporeidade, fez-se como nós, sem necessariamente ser como nós. Não era preciso. Nem possível. Porque se assim fosse, não seria o Cristo, mas o Adão, a Eva, a Maria ou o Jorge. E nenhum de nós pode ser o Redentor, assim como Ele não pode ser nenhum de nós.
Nota: * O título "O Pecado que Cristo não levou" não faz referência a algum pecado que Cristo tenha praticado, mas ao objetivo do texto, explicar porque Ele não herdou em sua natureza humana o pecado.
[1] A genealogia de Cristo, segundo Lucas, vai até Adão [Lc 3.38].
[1] A genealogia de Cristo, segundo Lucas, vai até Adão [Lc 3.38].
[2] Zigoto é denominado ovo e resulta da união de dois gametas: óvulo e espermatozóide. É uma célula totipotente, ou seja, é capaz de guardar as características genéticas dos progenitores, podendo gerar todas as linhagens celulares do organismo adulto [Fonte: Wikipédia]
[3] Gleanings in the Godhead - 29.The Humanity of Christ de Arthur Pink. Recebi este texto de um querido irmão e amigo, que coincidentemente enviou-o quando estava revisando o meu post, a tempo de incluí-lo. Uma tradução livre e parcial seria: "A humanidade de Cristo foi singular, a história não fornece analogias e nem tampouco sua humanidade pode ser ilustrada por nada na natureza. É incomparável, não somente à nossa natureza caída como também à natureza caída de Adão. A humanidade dEle esteve sob a imediata agência do Espírito Santo".
[4] Teologia Concisa, J. I. Packer, Ed. Cultura Cristã, pg 78-80. Texto disponível no Monergismo.
[5] Teologia Sistemática, Louis Berkhof, Ed. Cultura Cristã, pg 227.
[6] A minha definição de "Alma" compreende sempre a mente e o espírito, como suas partes integrantes.