segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O pecado que Cristo não levou*









Por Jorge Fernandes Isah

Defendi AQUI e AQUI a eternidade da natureza humana de Cristo; e a imutabilidade da natureza humana de Cristo, e do próprio homem, AQUI. Serei excomungado de vez, agora, por voltar ao tema. Antes, definirei alguns pressupostos da ortodoxia cristã quanto ao Redentor, para situar-nos:

1)Cristo é 100% Deus e 100% homem;
2)Cristo é uma única pessoa, não havendo duas mentes nem duas personalidades, mas apenas uma, o Verbo eterno.
3)As duas naturezas de Cristo não se misturam, ainda que se comuniquem.
4)Os atributos de uma natureza não são passados para outra natureza, fazendo com que Cristo se tornasse em um terceiro ser a partir da misturas de suas naturezas.
5)Cristo é eterno em sua divindade, e temporal em sua humanidade.
6)Cristo foi gerado em Maria, virgem, pelo Espírito Santo.
7)Cristo é descendente de Adão, assim como o é de Abraão e Davi.
8)Cristo não tem pecados, jamais pecou.

Posto o que a ortodoxia cristã advoga para o Redentor, pergunto: Sendo o Senhor descendente de Maria, Davi, Abraão e Adão, por que não herdou o pecado, nem participou da corrupção da raça humana? [1]

Alguns dirão que o fato de Maria não ser fecundada por um homem, mas pelo Espírito Santo, fez com que Cristo não recebesse a imputação do pecado original. Contudo, Maria também não é descendente de Adão? Ao que replicarão: o pecado está na semente do homem, não na semente da mulher, como parece indicar Gn 3.15. Em outras palavras, esse argumento afirma que a semente da mulher, isoladamente, não tem o pecado, o qual está presente na semente do homem. Como são necessárias as duas sementes, o óvulo, feminino, e o sêmen, masculino, para se ter o ovo ou zigoto [2], Cristo não herdou o pecado por não ser gerado natural mas sobrenaturalmente. Porém, fica a questão: o fato de Cristo ser gerado pelo Espírito, por si só não o tornaria essencialmente diferente do homem?

Não consigo entender porque Cristo teria de ser Ipsis litteris como homem para que sua obra na cruz fosse eficaz. Ele tinha de ser igual a nós em tudo para ser real? Mas real em qual aspecto? No aspecto imperfeito herdado de Adão? Ou na perfeição existente em Si mesmo? O fato de não ser imperfeito o torna em um homem irreal? Ou a sua humanidade perfeita faz dele o homem perfeito?

O fato de não ter pecado, nem ter a possibilidade de pecar, o torna essencialmente diferente do restante da humanidade. E dizer que, em algum aspecto, Cristo pudesse pecar ou sujeitar-se ao pecado [hipoteticamente falando], implicaria na possibilidade de Deus pecar, o que é absurdo, e se opõe frontalmente à Escritura. Entender os textos que dizem que Ele em tudo foi tentado como nós, como uma possibilidade de pecar, significa que poderia, a qualquer momento, ceder à tentação, e por si só lançaria por terra o princípio de que Cristo é o santo de Deus [Mc 1.24;Lc 4.34]. É como se quiséssemos, meio à forceps, deter uma mínima, irrisória, participação na salvação. Chamar a atenção para nós mesmos, como se algo de bom em nós existisse em Cristo. Como a dizer: "se não houvesse a parcela humana em Cristo, não haveria salvação". De certa forma, esperamos exaltar-nos, ainda que inconscientemente, na salvação que é completamente divina, e procede somente de Deus. É o que diz o profeta: "Do Senhor vem a salvação" [Jn 2.9] Como disse Arthur Pink:

"The humanity of Christ was unique. History supplies no analogy, nor can His humanity be illustrated by anything in nature. It is incomparable, not only to our fallen human nature, but also to unfallen Adam’s. The Lord Jesus was born into circumstances totally different from those in which Adam first found himself, but the sins and griefs of His people were on Him from the first. His humanity was produced neither by natural generation (as is ours), nor by special creation, as was Adam’s. The humanity of Christ was, under the immediate agency of the Holy Spirit, supernaturally "conceived" (Isa. 7:14) of the virgin. It was "prepared" of God (Heb. 10:5); yet "made of a woman" (Gal. 4:4.) [3]

Porém, o pecado de Maria persiste, a menos que se faça como os católicos e se defenda a sua não-pecabilidade. Mas a Bíblia não afirma isso, pelo contrário, diz que todos pecaram, sem distinção [Rm 3.23], e de que apenas Cristo jamais pecou [Hb 4.15]. Então, do ponto de vista bíblico, como seria possível Cristo, sendo homem, não herdar o pecado original?

Há a necessidade de se definir o pecado original, e de que forma, biblicamente, é transmitido. “Pecado original significa o pecado derivado de nossa origem, não é uma expressão bíblica (foi Agostinho quem a cunhou), mas é uma expressão que traz a uma proveitosa focalização a realidade do pecado em nosso sistema espiritual” [4]; ou ainda: "o estado e condição de pecado em que os homens nascem" [5], em outras palavras, o pecado original é algo que não somente nos distingue de Cristo, mas algo que vai muito além, impossibilitando-o de ser igual a nós. Assim, entendo que o pecado não é algo passado de pai para filho, na fusão dos elementos reprodutores do homem e da mulher. Por isso a distinção acima sobre semente não procede como argumento para Cristo não herdar o pecado. Adão, ao cair, representou a raça humana no Éden, de tal forma que todos os homens, sem exceção, caíram juntamente com ele. Todos os homens estavam em Adão [e também as mulheres, claro], o qual foi o cabeça da raça humana, de tal forma que toda a humanidade estava nele, participando do seu pecado, e assumindo a culpa advinda dele. Por isso todos caíram, e morreram juntamente com Adão: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” [Rm 5.12]. Deus nos considera tão responsáveis por esse pecado quanto Adão, de tal forma que nascemos “mortos em ofensas e pecados” [Ef 2.1], mesmo quando ainda não cometemos efetivamente nenhum delito. Ele está em nosso coração como uma disposição natural, como algo intrínseco à natureza humana, apenas à espera para manifestar-se; algo latente que acontecerá a seu tempo, sem chance de não ocorrer, a menos que não haja tempo [como na morte de bebês prematuros].

A pergunta inicial está a reclamar uma resposta: Por que Cristo não herdou o pecado?

Há quem diga que o fato de Cristo ser Deus, anulou a herança do pecado. Como Deus não pode pecar, sendo santo e perfeito, a humanidade do Redentor tornou-se imune pela impecabilidade divina. Porém... Se as suas duas naturezas não se misturam, como é que a divina “anulou” na humana o pecado federal? Se elas não se misturam, como o pecado original não foi transmitido a Cristo? Há duas hipóteses, ao meu ver:

1) Cristo não herdou sua humanidade de Maria. Desta forma, o Espírito Santo foi quem gerou o homem Cristo, apossando-se apenas da carne, do físico doado por Maria. É o que parece dizer o anjo: “José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo” [Mt 1.20]. E a resposta que ela recebeu ao questionar o anjo: “Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” [Lc 1.34-35].

2) Cristo sempre teve a natureza humana, como essência. O que foi gerado em Maria foi o corpo, a parte material do Senhor.

Sendo essa a minha opção predileta, primeiro, definirei o que entendo por essência, conforme o dicionário Michaelis:

Essência: sf (lat essentiaNatureza íntima das coisas; aquilo que faz que uma coisa seja o que é, ou que lhe dá a aparência dominante; aquilo que constitui a natureza de um objeto.

Compreendo que o homem é um ser completo, carne e alma [6]. Porém, entendo que a humanidade está presente na alma, usando o corpo como dispensário ou habitáculo. Desta forma, o pecado age na alma, e é ela que precisa de regeneração. Quando Adão pecou, a morte veio como conseqüência da transgressão da Lei divina, da ordem expressa de Deus: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente, morrerás” [Gn 2.17]. Na desobediência do homem, encontramos dois tipos de morte: a física e a espiritual. A física, fez do corpo corruptível, o qual voltará à terra, como está escrito: "No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” [Gn 3.19]. A espiritual, causou a separação do homem de Deus; ele perdeu a comunhão com o Criador, de tal forma que foi necessário reabilitá-lo através do sacrifício de Cristo na cruz, o qual pagou os pecados do seu povo, expiando-o, justificando-o diante de Deus [Hb 2.17]. Por sermos descendentes de Adão, automaticamente fomos representados por ele no Éden, e recebemos a maldição do pecado: as duas mortes.

Cristo, ao receber os pecados do seu povo, por imputação, morreu fisicamente, pois é-lhe impossível morrer espiritualmente, visto ser Deus. Para Cristo, não há morte espiritual, apenas física. Da mesma forma, os eleitos, aqueles que foram ligados eternamente a Deus na temporalidade, pela obra de Cristo, também não morrem mais espiritualmente, mas apenas em sua corporeidade. Porque “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” [Ef  2.5-6]. Ora, alguém que estava morto e foi vivificado pode morrer novamente? Especialmente se foi vivificado em Cristo? Se foi ressuscitado nEle? Se está assentado nos lugares celestiais com Ele? O que nos impede de desfrutar completamente desta obra de Deus são exatamente duas coisas: a temporalidade, estarmos no tempo, e o corpo, que precisa cumprir o castigo de morrer em sua corruptibilidade.

Alguém poderá pensar: "mas esse seu argumento não se parece com o gnosticismo dos primórdios da igreja? Quando o corpo era visto como mau?". Responderei, enfático: Não! Porque, como disse, o pecado afetou o homem por completo, mas ele age na parte imaterial primeiramente, e o corpo é tão somente o veículo pelo qual ela se manifestará. O corpo, por si só, não decide pecar. A alma é que impulsionará o corpo, controlando-o, ordenando-o para o pecado. A alma é que precisa de regeneração, de ser vivificada; é ela que se encontra morta, separada de Deus. O corpo, enquanto suas funções biológicas não cessarem, permanecerá vivo, ainda que a alma esteja morta. O inverso acontece quando a alma é vivificada por Cristo; ela permanece viva mesmo com o corpo morto. O Senhor, por algum momento, após a encarnação, permaneceu sem corpo. Do instante em que a vida expirou-se na cruz até a ressurreição, por três dias, Cristo permaneceu Deus-homem, mesmo não tendo um corpo. Se a natureza humana fosse dependente em sua existência do corpo, como essência, Cristo teria deixado de ser homem, permanecendo apenas Deus. Para, depois da ressurreição, voltar a ser Deus-homem. Porém, isso é possível? Teria Ele novamente sido gerado?

Um trecho que me chama a atenção é: “O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é o primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais” [1Co 15.45-48]. Há clara e nitidamente uma diferença entre Adão e Cristo, o primeiro e o segundo homens. Mas, o que Paulo quer dizer com terreno e terra, celestial e céu? Os lugares de onde saíram? Ou há também uma transposição de características que são evidenciadas pelos termos? Por exemplo, o fato de Adão ser da terra revela a sua condição temporal, imperfeita, pecaminosa e finita, enquanto o fato de Cristo ser do céu representa que é santo, perfeito, eterno e infinito, mesmo em sua humanidade, do contrário, se a humanidade de Cristo for terrena, como será perfeita? Por isso, o apóstolo não se refere a Cristo como terreno, ainda que o seu corpo o fosse. 

O que me leva à conclusão de que, para que o pecado não fosse herdado por Cristo, era necessário que a sua humanidade também não fosse herança do primeiro Adão, de tal forma que o corpo permanecesse incontaminado. E a prova de que não foi contaminado é que o seu corpo não viu a corrupção. Contudo, fica a pergunta: se o corpo de Cristo não foi contaminado nem viu a corrupção, por que morreu? Não é essa a conseqüência natural do pecado? Sim. Mas o pecado que levou à morte física de Cristo não foi dEle, mas nosso; por causa dos pecados do seu povo que lhe foram imputados, sobreveio-lhe como punição a morte, sem que houvesse a corrupção da carne. Ele teve de cumprir toda a condenação que nos era devida, para nos livrar da pena que nos seria imposta, caso não se sacrificasse em nosso lugar.

Ao assumi-la, a corporeidade, fez-se como nós, sem necessariamente ser como nós. Não era preciso. Nem possível. Porque se assim fosse, não seria o Cristo, mas o Adão, a Eva, a Maria ou o Jorge. E nenhum de nós pode ser o Redentor, assim como Ele não pode ser nenhum de nós.

Nota: * O título "O Pecado que Cristo não levou" não faz referência a algum pecado que Cristo tenha praticado, mas ao objetivo do texto, explicar porque Ele não herdou em sua natureza humana o pecado.
[1] A genealogia de Cristo, segundo Lucas, vai até Adão [Lc 3.38].
[2] Zigoto é denominado ovo e resulta da união de dois gametas: óvulo e espermatozóide. É uma célula totipotente, ou seja, é capaz de guardar as características genéticas dos progenitores, podendo gerar todas as linhagens celulares do organismo adulto [Fonte: Wikipédia]
[3] Gleanings in the Godhead - 29.The Humanity of Christ de Arthur Pink. Recebi este texto de um querido irmão e amigo, que coincidentemente enviou-o quando estava revisando o meu post, a tempo de incluí-lo. Uma tradução livre e parcial seria: "A humanidade de Cristo foi singular, a história não fornece analogias e nem tampouco sua humanidade pode ser ilustrada por nada na natureza. É incomparável, não somente à nossa natureza caída como também à natureza caída de Adão. A humanidade dEle esteve sob a imediata agência do Espírito Santo".
[4] Teologia Concisa, J. I. Packer, Ed. Cultura Cristã, pg 78-80. Texto disponível no Monergismo.
[5] Teologia Sistemática, Louis Berkhof, Ed. Cultura Cristã, pg 227.
[6] A minha definição de "Alma" compreende sempre a mente e o espírito, como suas partes integrantes.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Quanto à parousia e a verdade

Por Jorge Fernandes Isah


Ultimamente, tenho sido desafiado por alguns irmãos a responder sobre o fato de Cristo dizer que não sabia quando seria a parousia [Mt 24.36]. Confesso que tem me tirado o sono, e cada vez mais me sinto encurralado diante da questão. Por que? Porque, de certa forma, não consegui visualizar Cristo fatiado, dividido ou segmentado em suas naturezas, assim como a Bíblia também não o revela dessa maneira. Mas as atitudes temporais e humanas do Senhor em confronto com sua natureza divina, eterna e imutável, leva-nos a meditar e inquerir em como se dá a comunicação entre elas, de tal forma que Cristo permaneça um só, ainda que tendo duas naturezas; como o Deus-homem permanece uma Pessoa, em que habitam duas vontades e duas mentalidades.

Não me furtaria a aceitá-lo como um mistério. Paulo, em várias passagens, nos diz que Cristo é o grande mistério, porém não fala como se fosse oculto, como se não pudéssemos compreendê-lo, mas como algo revelado e tangível pela encarnação do Verbo. Algo que transcende o simples entendimento intelectual, e se acomoda na fé que nos foi dada por Deus. Ou seja, nem tudo quanto à pessoa do Redentor talvez seja explicado e alcançado pela mente, porém ela será convencida pela fé de que os princípios postos na Escritura são verdadeiros, e de que Cristo é real e fielmente descrito por ela.

O que não nos impede de debruçar sobre a Palavra e empreender todos os esforços, esgotando-os, para se chegar ao entendimento do que nos foi revelado por Deus.

Assim não tenho dúvida alguma de que Cristo é tanto Deus como homem, porque esta é a revelação, certamente a mais importante em toda a Escritura. Pela fé, aceito o que não compreendo, mas o que ainda não compreendo busco compreender; se não for possível, pela vontade divina, recebo-o com agrado, como oferta de Deus, porque a minha limitação, incapacidade e imperfeição não podem jamais tornar a verdade em mentira, nem mudá-la ou negá-la. A verdade permanece, mesmo quando não estou apto a interpretá-la.

Parece uma fuga, ou a maneira de se anular a razão, mas não é isso. Simplesmente há coisas que me são por demais intricadas e maravilhosas, e mesmo que eu tenha muita vontade e disposição, não as alcançarei até o dia em que me forem reveladas. É o que nos foi dito: “Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” [Is 55.9]; pois, “naquele dia nada me perguntareis” [Jo 16.23]. O fato é que a minha ignorância não é desculpa nem argumento para não crer na Palavra, nem minha limitação pode desqualificá-la ou restringi-la. Antes, somente é-me possível sair da prisão, das trevas em que o pecado tem-me trancafiado, pela revelação de Cristo:“Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida” [Jo 8.12].

Então, há princípios claramente bíblicos que não posso rejeitar, nem me esquivar, pois assim fazendo-o, estarei pondo em risco não somente a minha fé, mas a minha própria vida. Por isso, somos alertados à prudência, à diligência, ao orar e vigiar, ao buscar em Deus as respostas para as nossas inquietações, ao invés de buscá-las em nós mesmos, em nossa pretensa suficiência. O espírito da auto-suficiência apenas manterá o crente recluso em sua insuficiência, numa espécie de auto-anulação, em que as qualidades requeridas para o amadurecimento espiritual estarão suspensas, tornando a vida cristã um sem-sentido, ou quando muito, um sentido incompleto. É o que Paulo diz: “Com leite vos criei, e não com carne, porque ainda não podíeis, nem tampouco ainda agora podeis; porque ainda sois carnais” [1Co 3.2-3], e ainda: “porquanto vos fizestes negligentes para ouvir. Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos torne a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite, e não de sólido mantimento. Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino” [Hb 5.11-13].

Há um exemplo que tipifica bem o que estou dizendo, ou tentando dizer. Cristo foi aprisionado e levado para diante de Pilatos. O governador queria entender porque os judeus desejavam matá-lo. Então, fez-lhe algumas perguntas, as quais o Senhor respondeu, deixando Pilatos ainda mais intrigado. Em dado momento, perguntou:

“Logo tu és Rei?”

Ao que o Senhor respondeu: “Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci, e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz”.

Pilatos retrucou: “Que é a verdade?”.

Então saiu e foi ter com os judeus [Jo 18.37-38].

Interessante como a incredulidade de Pilatos era tamanha que sequer esperou uma resposta. Provavelmente, porque não acreditava, assim como hoje, que exista a verdade; não uma, duas ou três “verdades” que se conflitam e se anulam, exatamente por serem falsas; como o pensamento nos tempos pós-modernos parece levar a uma realidade fora da realidade. Ele não reconheceu a verdade indubitável, infalível, inquestionável: Cristo.

Pilatos não esperou a resposta; disse, “o que é a verdade?” como o maior de todos os arrogantes e tolos, com desdém, rejeitando não somente a afirmação de Cristo, mas o próprio Cristo. Ali encontramos evidenciado todo o pensamento antropocêntrico, em que o homem, por ser incapaz de compreender e entender a realidade, apenas a despreza por não ser digno de aceitá-la. E se lança do abismo, a espera de um chão que não seja duro, inexpugnável, mas que amorteça a sua queda e acolha-o cuidadosamente. Esse homem já está morto, mesmo antes de chegar ao fundo. É apenas questão de tempo. Por isso o Senhor disse: “porque vos digo a verdade, não me credes” [Jo 8.45].

Como o governador, muitos não querem ouvir. Contentam-se com uma suposta verdade que se revelará aniquiladora; contentam-se consigo mesmos; com o tudo que são e podem fazer, sem perceber que estão não-sendo e não-fazendo, ou se são e o fazem, é para a perdição; pois sem Deus, o que há, é o homem incompleto, abandonado e autoprivado pela humanidade; entregue ao castigo e ao sofrimento autoinfligido. Está escrito:“Como o cão torna ao seu vômito, assim o tolo repete a sua estultícia” [Pv 26.11].

Cristo é a verdade, opondo-se à mentira. Cristo é real, opondo-se à ilusão e irrealidade. Cristo é vivo, opondo-se à morte. Cristo é fiel, opondo-se à traição. Cristo é certo, indubitável, opondo-se ao engano e à dúvida. Cristo é, sem jamais poder não ser.

Quanto à parousia, deixarei para outro dia.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Eterno e Perfeito, não pode mudar


















 Por Jorge Fernandes Isah


Deus é imutável. E Cristo?...


Do ponto de vista divino, posso afirmar peremptoriamente que Cristo é imutável; como Deus, Ele não muda [Ml 3.6]. E sua humanidade, também? Muitos dirão que não; Cristo é mutável, porque chorou, riu, entristeceu-se, alegrou-se, angustiou-se, morreu e ressuscitou. Mas, o que isso prova mesmo? Que Ele é mutável? Em qual condição? Por quais motivos?

Definamos o que vem a ser imutabilidade, segundo o dicionário Priberam:

Imutabilidade: s. f. qualidade de imutável.

Imutável: adj. 2 gén. 1. Que não é mudável. 2. Permanente. 3. Inalterável, fixo. 4. Constante.

Em linhas gerais, imutável é aquilo que é; em que não se pode acrescentar nem tirar nada; que não está afeito ao tempo nem a variações; que permanece como sempre esteve; que é em si mesmo, sempre o mesmo. Este conceito está diretamente ligado à eternidade e a perfeição, pois o imutável não pode melhorar ou piorar em sua condição perfeita e eterna.

Portanto, Deus é imutável exatamente porque é eterno e perfeito; Ele existe em si mesmo, e foi quem disse: “Eu sou o que sou” [Ex 3.14].

Sabemos que Deus decretou todas as coisas e a sua vontade se realizará irrevogavelmente: “Conhecidas são a Deus, desde o princípio do mundo, todas as suas obras” [At 15.18]. Assim, entendendo-se que as duas naturezas de Cristo não se conflitam, mas colaboram uma com a outra, estando a natureza divina em preeminência em relação à humana, podemos dizer que a humana está subordinada, condicionada, e à serviço da divina. Mas, e se a natureza humana de Cristo não for derivada do homem, ao contrário, a natureza do homem é que for derivada de Cristo? Ou seja, eternamente Ele é Deus e homem, de tal forma que aquilo que nos foi dado através de Adão, no Éden, foi-nos entregue como parte da essência de Deus para nós. Essa é uma conjectura com a qual a maioria dos cristãos, para não dizer a unanimidade, não aceitaria, porém, não vejo onde a Escritura poderia negá-lo, a priori.

Mas voltemos ao decreto eterno. Deus, ao pensá-lo uma única e decisiva vez, preordenou os atos, sentimentos e decisões de Cristo-homem. Portanto, como nós, Cristo tem seus pensamentos, vontade e ações sujeitos a Deus. Nem Ele, nem nós, nem nenhum aspecto da criação são mutáveis, do ponto de vista divino. Explico: o homem é imutável, pois realizará e será exatamente aquilo que Deus planejou que fosse, ainda que no tempo esteja sujeito a mudanças, contudo, elas não são imprevisíveis, surpreendentes, desconhecidas de Deus; nem tampouco acontecem aparte dEle, autonomamente ou decorrentes de uma vontade independente, livre de Deus. Para Ele, cada fio negro da minha cabeça que se torna branco cumpre rigorosamente o seu decreto eterno, da maneira como planejou. Uma ruga nova, um quilo a mais ou a menos, ou qualquer outra alteração física, emocional e espiritual jamais ocorrem livremente, sem que Deus haja ativamente para que se realizem. Assim, não é impossível dizer que o homem, em seu caráter mutável, cumpre rigorosa e meticulosamente a imutabilidade preordenada e determinada pelo Criador.

Para Deus, as mudanças são eternas e imutáveis.

Com isso, não estou colocando Cristo, mesmo a sua parte humana, como elemento da criação. Posso garantir que a sua parte material, o corpo, foi criada: ele nasceu, cresceu e morreu. Quanto à essência humana, a sua humanidade [1], deixá-la-ei em aberto, por enquanto.

De Cristo, podemos dizer que é verdadeiramente imutável; ao contrário de nós, não teve quem o sujeitasse a torná-lo no que é, porque Ele é, sempre! Como disse de si mesmo: “Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão existisse, eu sou” [Jo 8.58]; e ainda: “Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, diz o Senhor, que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso” [Ap 1.8]. Ele é eterno, mesmo na possibilidade de sua natureza humana ser herdada de Maria, sua mãe; mesmo que seja da carne e do sangue de Davi; mesmo como descendente de Adão. Pois quem determinou que assim fosse? Não foi a pessoa do Cristo, em unidade com a pessoa do Pai e do Espírito Santo? É como Paulo diz, referindo-se a Ele: “Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo” [2Tm 1.13]. Infelizmente, há quem tente negá-lo, fazendo-o meramente homem, ou um super-homem, com poderes concedidos pelo Pai; um Cristo bem ao gosto dos monarquianistas [2], apenas uma manifestação de Deus, não uma Pessoa divina, autosuficiente e consubstancial com as demais pessoas da Trindade.

Para Deus não há mutabilidade nas coisas, há mobilidade, no sentido de que elas correrão para um lado ou para outro, numa ou noutra direção, sempre segundo a sua imutável vontade. Acontece que, por sermos finitos e imperfeitos, e estarmos no tempo, vemos o andamento e o desenrolar dos fatos em sua progressão, e até mesmo em sua regressão. Como já disse em algum lugar, a realidade para Deus é móvel, mas imutável, não se arredando uma fração de milímetro do seu plano determinado; enquanto, para nós, é móvel e mutável. Deus a vê completa e infalivelmente acontecendo por sua vontade. Nós estamos nela, sem saber o que ocorrerá um segundo depois, sem explicar como aconteceu um segundo antes. Enquanto falíveis, a realidade é infalível, porém, ambos são inevitáveis, realidade e o homem, porque Deus assim quis; como manifestação da sua vontade imutável. As mudanças, ao acontecerem, não indicam que Deus mudou, porque Ele não muda, nem seu plano muda, nem há nele "mudança nem sombra de variação" [Tg 1.17]; mas simplesmente o curso dos acontecimentos mudou, dentro do plano eterno e imutável, cumprindo-se por sua autoridade e poder.

Então, a criação, como um todo, seja inanimada, animada ou espiritual, é imutável em todos os seus aspectos aos olhos do Senhor, o responsável por dar-lhes existência, conduzindo-as aos termos por Ele organizados. A realidade é de que tanto o planejamento, como a execução, causas, conseqüências, e os fins alcançados, somente são possíveis pelo controle pessoal e autoritativo de Deus ao estabelecê-los.

É impossível dizer que Cristo apenas “recebeu” a natureza humana ou dela se apropriou; na verdade, foi planejada e cumpriu-se eternamente por sua própria vontade, em si mesmo. Desta forma, ao encarnar-se, assumindo a forma humana, no tempo, o seu nascimento, crescimento, emoções e sentimentos, não podem jamais ser prova da sua mutabilidade, pois o que é, sempre foi, no sentido de que sempre soube o que seria, e levou a termo realizá-lo temporalmente, ainda que exista antes da fundação do mundo:“Por isto o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a tomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai” [Jo 10.17-18].

O eterno e perfeito, não pode mudar.

Cristo, em sua eternidade e perfeição, é imutável.


Notas: [1] Por essência humana, entendo ser aquilo que faz com que o homem seja o que é; aquilo que constitui a sua natureza e o diferencia das demais criaturas, tanto físicas como espirituais, sem o que ele não seria o que é.
[2] Monarquianismo e suas variantes como o sabelianismo, em linhas gerais, afirma que Cristo era apenas humano, podendo ser revestido pelo Espírito Santo, ou apenas o "invólucro" no qual o Pai se projetava, se revelava como o Filho.

domingo, 8 de agosto de 2010

Cristo não-dual

















Por Jorge Fernandes Isah

Em nenhuma passagem da Escritura temos a apresentação de Cristo como um ser dualista, onde duas personalidades se apresentam de maneira conflitante, quase a se digladiaram entre si, disputando a primazia, o controle do mesmo corpo. Infelizmente, muitos acreditam ser Cristo um ser dual, onde uma de suas naturezas, ao se manifestar, encobre, isola ou anula a outra. Não há nada que nos leve a essa compreensão. Pois seria possível o Deus ser anulado pelo homem? Ou isolado por ele? Ou Deus estaria simplesmente usando a matéria para manifestar-se humanamente? Quando Paulo nos diz para ter a mente de Cristo, a quem se refere? Quando chamados a ser santos como Ele, a quem se deve imitar? Ao adorá-lo, bendizê-lo, glorificá-lo, estamos separando-o, de tal forma que apenas uma parte será o alvo do louvor? Na eternidade, seremos chamados à glória de quem? E mais, quem nos resgatou? A própria idéia de uma parte de Cristo, a fragmentação de sua Pessoa, por si só deve ser prontamente rejeitada, como um absurdo; e mais do que isso, uma perversão da verdade. Acontecer de se olhar para determinada atitude do Senhor e considerá-la como sendo do homem, enquanto outra é de Deus, faz-nos defender, ainda que inconscientemente um “Cristo” não-Cristo e jamais revelado, posto estar em flagrante oposição a tudo o que a Palavra declara de si mesma [1].

Há de se entender que a nossa imperfeição e má-interpretação nos levará a segmentá-lo como se estivéssemos diante de dois seres, como se dois “Cristos” habitassem o mesmo corpo; como irmãos siameses a espera de serem separados. Porém, é-se impossível dividi-lo, mesmo que alguns se esforcem em fazê-lo. A Bíblia não o trata assim, antes reafirma a sua unidade, como ser indiviso, uma só personalidade, um Cristo apenas; Deus e homem é verdade, mas coexistindo harmoniosamente, sem conflitos, sem disputas, sem incoerências, sem dualismos. Parece-me inadequado, impróprio e leviano dizer que certa ação é do Cristo-homem, enquanto outra é do Cristo-Deus. Cristo é um, e age segundo a sua unidade pessoal, não segundo uma suposta divisibilidade em si mesmo. Ao se dizer que isso é do homem, e isso é de Deus, fazemo-lo um ser duplo, com dupla personalidade, com dupla pessoalidade, duas mentes, dois seres vivendo no mesmo físico, o que, por si só, seria indicativo de imperfeição; quando não do ser esquizofrênico, da Palavra que falha em não se referir a nada ou alguém parecido com ele.

Os apóstolos e os discípulos do Senhor viam-no como homem mas também como Deus em cada uma de suas atitudes, ainda que algumas delas pendessem mais para um lado do que para o outro, sob o nosso olhar limitado e imperfeito, a partir de uma compreensão reducionista. Contudo, pelo testemunho bíblico, não há sequer a alusão de que fosse duas pessoas, nem mesmo distinguiam suas ações. Também para Cristo, ele era tanto um como  outro, o que até mesmo os seus inimigos perceberam e admitiram, ao ponto em que planejaram e executaram a sua morte na cruz. Com isso, não quero dizer que eles creram nele, mas reconheciam que ele se proclamava Deus, sendo homem.

Certa vez, Ele disse, respondendo a uma acusação dos fariseus: “Ainda que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei de onde vim, e para onde vou; mas vós não sabeis de onde venho, nem para onde vou” [Jo 8.14].

Claro que Cristo não está a falar apenas como homem, nem apenas como Deus, nem se referindo a qual parte dele veio do céu ou para lá voltaria, nem qual parte testemunhava de si mesmo ou não; nem qual parte era verdadeira ou não. Temos a nítida idéia de unidade, de que as suas duas naturezas não são distintas nem distinguidas [de que não as distinguia], nem ele fala de uma como se não falasse da outra. Para ser mais especifico, Cristo não faz qualquer alusão a um lado divino e outro lado humano, dissociado da sua pessoalidade.  Ele era um, e se proclamava legitimamente como sendo um. Não o vemos dizer: “Eu, como Deus, vou para o Pai”, ou: “Eu, como homem, não vim do céu”, ou ainda: “Eu como Deus não morrerei por vocês, mas apenas como homem”. Ele se assume tanto homem como Deus, em unidade. Com isso, não quero dizer que Deus morra, porque a morte é impossível para Deus; não há como ele se separar de si mesmo, enquanto, para nós, a morte significa a separação de Deus. Da mesma forma que acontecerá conosco, aconteceu ao Senhor, que se separou do corpo, da parte material, ressurgindo com novo corpo, glorificado. Desta forma, ascendeu aos céus, e está sentado  à direita do Pai. 

Assim, também nós, os salvos em Cristo, unidos a Deus, jamais seremos separados dele; haverá apenas a morte do corpo, cuja terra haverá de dar conta, o qual será glorificado, assim como o foi o do Senhor. Em todos os aspectos, tanto o humano quanto o divino não se separaram, pois não podem se separar sem que Cristo deixasse de ser Cristo. E assim como Deus não pode deixar de ser Deus, também Cristo não pode deixar de ser o que é. Quando alguém diz que a humanidade morreu na cruz, dizemos que houve separação, e se houve, Cristo não é mais o mesmo. Ainda que seja unido novamente na ressurreição, em algum momento e aspecto deixou de ser o que era. Portanto, defendo que, na cruz, houve a separação do imaterial e do material na morte; sendo sepultado o corpo; sendo ungido com bálsamos o corpo; o que esteve três dias no sepulcro foi o corpo; o que ressuscitou foi o corpo. Cristo esteve sempre uno, Deus e homem, inseparáveis. Senão, como poderia dizer: “Eu sou”? E isso nos leva à questão da imutabilidade, mas essa é outra história. Para outra hora, quem sabe...

O certo é que, qualquer tentativa de dividi-lo, representará em teologia fragmentada e não-cristã, por conseguinte, não-bíblica. E à conclusões que, se não inviabilizam o Cristo, o tornam em um quase-Cristo, ou seja, em um não-Cristo. E Cristo é, sem jamais deixar de ser, porque é eternamente, ontem, hoje, sempre.


Nota: [1] Cristo também é chamado de a Palavra, conforme 1João 5.7; porque o Evangelho é de Cristo, e podemos dizer que o Evangelho é o próprio Cristo.