sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Deus não faz acepção de pessoas

















Por Jorge Fernandes Isah


      A Bíblia nos diz que Deus não faz acepção de pessoas. Acontece que muitos distorcem esse ensino, afirmando que, por isso, Deus ama a todos, e Cristo morreu por todos. A lógica é a seguinte: se Deus não faz acepção de pessoas, não escolheu uns e rejeitou outros; e Cristo não pode ter morrido na cruz apenas para salvar uma parte da humanidade, mas o seu caráter expiatório favoreceu a todos os homens indistintamente. Caberia ao homem apossar-sedessa salvação ou não.
    A questão é como uma bola de neve: quanto mais se parte de um pressuposto falacioso, e se tenta justificá-lo, mais a mentira ganha corpo, e acaba por se distanciar sobremaneira da verdade. Por fim, não mais como uma pequena bola mas uma avalanche, se volta contra o tolo, a soterrá-lo em meio a uma profusão de equívocos. Resta-nos uma pergunta: então, qual é a verdade?
      Os versos que muitos se utilizam para argumentar que Deus ama a todos indistintamente, e por isso não faz acepção de pessoas são: "Porque, para Deus, não há acepção de pessoas" [Rm 2.11]; e, ainda: "Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas" [At 10.34]. Ora, isoladamente, os versos parecem corroborar o pensamento vigente entre os religiosos atuais, ao ponto em que não seria difícil chegar-se à conclusão universalista, a qual assevera que todos serão salvos, até mesmo o diabo e seus anjos, e o inferno é uma simples metáfora das contradições existentes na criação [1]. Esse seria o grand-finale de todo um pensamento confuso, ilusório e não-bíblico, se fosse verdade. Mas, felizmente, não é.
      Assim, o que esses versos querem dizer?
    No primeiro, Paulo nos mostra a imparcialidade de Deus. Explicando que ninguém pode se considerar inescusável diante dele, e apelar para a inocência por não conhecê-lo e a sua lei; visto a ignorância não ser argumento de defesa para o pecador, "porque todos os que sem lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão julgados" [Rm 2.12].
      Ao perguntar: "Por quê? Somos nós mais excelentes?"; Paulo respondeu:"De maneira alguma",  evidenciando que não há distinção entre os homens, e para Deus todos são iguais, pois tanto judeus como gentios estão debaixo do pecado [Rm 3.9]"Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" [Rm 3.23]; não há um justo sequer, não há quem entenda ou busque a Deus. Todos se extraviaram, e se fizeram inúteis. "Não há quem faça o bem, não há nem um só" [Rm 3.10-12]. Portanto nenhum de nós merece piedade diante dele; ninguém é melhor aos seus olhos; pelo contrário, todos somos iguais, ímpios, maus, rebeldes, insolentes, escória, indignos até mesmo de existir; e somente não somos consumidos por causa da sua misericórdia, que não tem fim [Lm 3.22].
     Nessa multidão de ignorantes, pecadores e desobedientes, Deus, por sua única vontade, exclusivamente pelo seu querer, elegeu alguns para a salvação e o restante para a perdição. O fato é que ninguém merece ser salvo, mas por sua graça, escolheu aqueles que amou por intermédio de seu Filho, Jesus Cristo;"justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus" [Rm 3.24]. Ou seja, Deus escolheu aqueles que amou eternamente, e amou aqueles que escolheu eternamente. Se a eleição fosse pela presciência, ao se antever aqueles que teriam fé, e escolhê-los pela fé que teriam, Deus faria, nesse caso, acepção de pessoas. Ele buscaria uma justificativa na própria pessoa, um mérito nela, e a fé seria esse valor de referência que traria significado a quem a detém, e o fundamento para  Deus salvá-la. A eleição não seria pela graça, mas por mérito pessoal, vista ser alcançada pela fé, como fruto do esforço humano e, assim, Deus preferiria-o em detrimento dos que não a têm. Acontece que isso seria justificação por obras, mas nenhuma justiça própria pode dar a salvação,"mas segundo a sua misericórdia, nos salvou pela lavagem da regeneração e da renovação do Espírito Santo" [Tt 3.5].
     Sendo assim, é complicado e perigoso acreditar que o homem possui a fé antes de se regenerar, pois demandaria uma obra pessoal, numa ação proveniente de uma energia inerente ao homem, alheia à vontade de Deus. Seria o mesmo que alguém ter um fósforo. Ele acenderia o pavio, cujo fogo o percorreria, consumindo-o, a fim de se deflagrar a regeneração. Ele incitaria o Espírito Santo a operar até mesmo contra a sua vontade, de tal forma que, ao menos nesse aspecto, ele se sobreporia a Deus em poder; o qual não poderia fazer nada sem que o pavio fosse acesso, sem que se desse o start para que, somente então, pudesse agir e iniciar a obra de transformação. Deus se tornaria em um agente passivo [com tudo à mão menos o fósforo], enquanto eu e você seriamos quem na verdade ativaria todo o processo. Nós teríamos a chama suficiente, sem a qual Deus seria um mero espectador; com toda a sua graça amontoada pelos cantos, pronto para entrar em ação, mas impotente para fazê-lo por si mesmo. Deus teria quase tudo, mas não teria o principal: o controle sobre toda a cronologia do evento. Sem o fósforo, e alguém para acendê-lo, o arsenal de graça e misericórdia seriam inúteis e lançados no lixo. Se um homem apenas não se decidisse a usar a sua fé, de nada adiantaria Deus ter preparado toda a sua obra. É como uma festa onde o anfitrião encomendaria o melhor  para se comer e beber, e ninguém fosse convidado, ninguém aparecesse de surpresa. A festa não teria sentido, nem os preparativos. O anfitrião veria o salão vazio, a comida intocada, o silêncio, e o despropósito de todos os arranjos comemorativos.
     Isso colocaria a nossa vontade em preeminência, numa escala superior à divina. E, Deus, talvez impassível, talvez ansioso [dependendo da cosmovisão] não poderia fazer absolutamente nada, a não ser esperar que a sorte trouxesse alguém à festa; ou que acendessem o pavio.
     Poderia ainda usar a seguinte ilustração: guardadas as devidas proporções, seria o mesmo que um comerciante ter um grande estoque de um determinado produto, abrisse a loja, e aguardasse os clientes aflorar, se  acotovelar, em busca da mercadoria. Caso eles não viessem, o que faria? Provavelmente, uma liquidação. Para esvaziar o depósito. E não é interessante que o Evangelho não seja um produto de fácil aceitação? E que todos o busquem ansiosamente? Ao ponto em que, para aceitá-lo, o corrompem, distorcendo-o de tal forma que se descaracterize e perca o seu caráter exclusivista e seletivo? Tornando-se palatável, digerível, e assim, facilmente acessível a todos? Possível sem a necessidade de arrependimento e perdão? Contudo, esse não é o Evangelho, mas o antievangelho, que simplesmente acomoda as pessoas aos seus próprios pecados, tornando-as ainda mais cegas e tolas do que já são. O Evangelho separa, divide, leva a perseguições, e até mesmo à morte, como nos diz o Senhor: "Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem e quando vos separarem, e vos injuriarem, e rejeitarem o vosso nome como mau, por causa do Filho do homem. Folgai nesse dia, exultai; porque eis que é grande o vosso galardão no céu, pois assim faziam os seus pais aos profetas"[Lc 6.22-23]. O que nos leva à seguinte pergunta: a aceitação do Cristianismo e o seu crescimento numérico reflete-se nessa profecia, que garante o ódio do mundo a Cristo e a conseqüente perseguição, ódio e rejeição tanto à sua palavra quanto aos seus discípulos? Se não, o que estamos a fazer? Por que não somos perseguidos? Por não causarmos divisão no mundo? Por que somos aceitos como se fôssemos iguais a eles? Em algum aspecto, o que se tem é um falso cristianismo, que quer e procura ser aceito e não rejeitado, que está pronto a aliar-se ao mundo, e não sofrer as consequências naturais por amor a Cristo, e em seu nome. Alguém pode imaginar uma coalisão ou aliança entre luz e trevas?[2]
     Pois bem, Paulo está dizendo que ninguém pode se autojustificar diante de Deus, logo, Deus não vê nenhuma qualidade no homem para escolhê-lo; e a escolha recai no próprio Deus, que a faz segundo os seus critérios, segundo a sua vontade, sem a ingerência ou mérito algum de quem quer que seja. Como está escrito: "Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece" [Rm 9.15-16]. A eleição é algo que vem do Senhor, não do homem [Jn 2.9]. É garantida por sua santidade, perfeição, sabedoria e justiça. Não será determinada por obras humanas, pois todas as nossas justiças são "como trapos de imundícia" diante de Deus, porque todos somos como imundos em nossas iniquidades [Is 64.6-7]. Em suma, todos somos condenáveis diante de Deus. Por isso, em sua justiça, ele não faz acepção de pessoas.
     No segundo caso, Pedro, após ser advertido por Deus em sonho para não preferir os judeus em detrimento dos gentios, na proclamação do Evangelho, reconheceu que ele devia ser apresentado a todas as criaturas, sem exceção. O que ele disse em "Deus não faz acepção de pessoas" foi confessar que as "boas novas" têm de ser levadas também aos gentios, e que não são exclusividade dos judeus, ao ponto dele crer que tanto esses como aqueles seriam salvos pela graça do Senhor [At 15.7-11]. A morte de Cristo na cruz devia ser anunciada entre todos os povos e nações, para que, assim, os eleitos fossem alcançados pela verdade, sem a qual todos estariam irremediavemente condenados e proscritos ao fogo do inferno. Então, o que temos aqui é a proclamação do Evangelho para eleitos e réprobos, judeus e gentios, deixando claro que, nesse aspecto, o da pregação, Deus não faz também acepção de pessoas, e todas estão no mesmo nível de igualdade.
     Neste ponto, não é preciso muita explicação, pois o contexto a que Pedro se refere está suficientemente delineado.
      Portanto, restam ainda duas questões a esclarecer: 
1) Cristo morreu por todos na cruz?
2) No caso da salvação, Deus faria acepção de pessoas?
    Esses serão capítulos à parte, que escreverei em breve, se assim Deus quiser.

Nota: [1] Alguns universalistas chegam ao extremo de afirmar que o diabo, demônios e o inferno são meras figuras de linguagem, usadas para revelar o mal como algo metafísico, abstrato, sem forma definida, onde não há sujeitos, mas parte da essência humana e que será derrotado no homem pelo próprio homem, pelo bem que subjaz em si mesmo. Em linhas gerais, para eles, Cristo veio nos dar exemplos morais, não veio salvar um grupo de eleitos, porque todos são filhos de Deus; o qual, por ser amor, não condenará ninguém.
[2] Esta questão está um pouco desfocada do objetivo do texto, mas considerei apropriado incluí-la sem desenvolvê-la suficientemente, o que poderá ocorrer em outro momento, num texto isolado sobre o assunto.
[3] Interessante que o projeto para escrever esta série estava engavetado há algum tempo, e até achava que não a escreveria mais. Contudo, ao ler o texto do Mizael Reis, "Suponhamos que Deus não fosse soberano", obtive o estímulo necessário para realizá-lo. 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A falsificação do bem






Por Jorge Fernandes Isah

    Não tenho por hábito escrever sobre política; nem quero tê-lo. Não que haja algum problema, que o tema seja proibido ou irrelevante. Não é isso. É que não me considero capacitado para tal tarefa, a despeito de ter aprendido muito nos últimos anos sobre o assunto. Acontece que há uma defasagem grande, e que não sei se serei capaz de sincronizá-la com o tempo, interesses e aptidão, e com a ignorância que ainda persiste. Porém, não tenho dúvidas de que um dos males do século passado, e que se espalha perigosamente no presente século, é o marxismo. Eu mesmo me descobri marxista apenas após ser confrontado pelo pensamento de alguns irmãos; e devo um especial agradecimento à Norma Braga, ao André Venâncio, aos irmãos de O Tempora, O Mores e ao Edson Camargo, entre outros. A sociedade, de uma forma geral, sem saber, assim como eu não sabia, defende o que não conhece e vive o que considera extinto, com o agravante de realizar um culto necrófilo, e se comunicar com os mortos. 
    Pois bem, assim como o nazismo, sua alma gêmea, o marxismo, escancara o ideário comum e a prova de que pertencem ao mesmo gênero ideológico. Como uma religião suprema, ele se vê como o absoluto, o arbitrário e todo-poderoso "deus", numa tentativa frustrada de substituir o Deus Vivo e bíblico. De alguma forma, se define como o salvador do homem, no sentido de que o homem se perdeu na história, e de que está capacitado a recriá-lo ao seu modo. Coloca-se como único habilitado a construir o homem ideal, restabelecer o homem primevo a partir da recriação da vontade sob a base ideológica estabelecida no cientificismo, mais notoriamente o darwinismo, partindo-se de um sentido evolutivo e purificador gnosticista. 
    Mais do que se pensa, há uma ligação intrínseca entre marxismo e nazismo, de tal forma que Hitler capturou muitos dos métodos de Lénin e Stalin aplicando-os em sua política genocida. Redefiniram a moral, dando-lhe uma roupagem que a distinguisse da velha moral bíblica; mas sempre a partir desta, como parasitas alimentando-se dela, produzindo, porém, um produto corrompido capaz de destruir a velha ordem e reestabelecer uma ordem nova. Para isso são necessários todos os meios para se reconstruir o regime e o homem novos, mesmo com a desculpa de se destruir uma pseudo-raça ou pseudo-classe. Eles se tornam irrelevantes, sejam quais forem, pois o objetivo, o que importa, é o fim a ser atingido. Os atos ruins e imorais que se pratica e comete são transformados em bons numa insidiosa e progressiva inversão de valores, redefinindo o senso comum de moral. O significado é claro: a destruição de uma pseudo-raça poluída, impura [nazismo], ou pseudo-classe contaminada pelo capitalismo [comunismo]. E criar um ídolo a partir do homem, mas que estará sobre o mesmo homem, como um pacificador a cultivar a trégua a partir de uma guerra interminável.
    Mas se há algo que os marxistas fizeram com maestria foi jogar para debaixo do tapete todos os seus crimes e táticas hediondas, apelando para uma falsa moralidade que justificasse os meios utilizados tanto para se chegar ao poder como para mantê-lo. O nazismo foi e é execrado publicamente como a mais odiosa manifestação totalitária, e o comunismo é esquecido em seus crimes igualmente odiosos e totalitários. Por que? 
    Enquanto ao nazismo se deu a valorização real de suas atividades, revelando-o em seu caráter mais cruel, sanguinário e injusto, ao comunismo se deu um caráter minimizador e reducionista; mas mais do que isso. No decorrer da história, seus crimes, o apelo à crueldade e injustiça máximas, foram tomados como modos legítimos de se "salvar" o homem, a partir da intervenção "milagrosa" do estado totalitário. E isso se deveu à distorção da moral, à corrupção do bem, que tornou possível as mentes contempladoras e cúmplices adotarem um discurso messiânico a partir da rebelião e sublevação da ordem moral. Aplica-se a "pedagogia da mentira", a qual, quando dita muitas vezes, acaba por se tornar em verdade. No comunismo, essas questões impoem-se mais sutilmente, em princípio, ao ponto em que partidos e movimentos marxistas não se apercebem da intoxicação absoluta da consciência moral pelo domínio ideológico completo. Está-se impossibilitado de discernir a corrupção que se processou, e passa-se uma vida inteira sem perceber isso. A prova maior é a de que não existem partidos nazistas no mundo [não com essa terminologia], enquanto não somente há partidos marxistas como governos comunistas espalhados planeta afora. E como isso é possível, diante de todos os crimes, barbárie e destruição nos lugares onde o comunismo se estabeleceu?
    O comunismo é dissimulado e muito mais perverso e perigoso do que o nazismo [ainda que o nazismo seja perigoso e perverso também], exatamente pelo seu caráter doutrinário "sutil", ao valer-se e servir-se do espírito de justiça e bondade para difundir e perpetrar o mal. Cada experiência recomeça na inocência, como se não se estivesse a praticar atos imorais, criminosos, espúrios e destrutivos. É essa subversão que o torna tão maligno, ao sugerir que o homem continuará sendo bom mesmo praticando efetivamente o mal, tudo para se alcançar um bem comum, destruindo-se o inimigo [e esse inimigo pode ser praticamente tudo, desde que se possa defini-lo como colaborador da classe capitalista; e, por isso, essa e outras definições estão sempre em reconstrução, ganhando novos ares e contornos ao bel-prazer do discurso marxista de perverter a verdade transformando-a em a mentira]. Enquanto o nazismo pede, diretamente, que o homem atue conscientemente como um criminoso. Não lhe é sugerido nada mais além disso. Que ele destrua o inimigo, ao qual ele de antemão já sabe quem é.
      A reeducação comunista, na verdade, faz o homem acreditar que o mal é bom, escondida atrás da moral comum, travestindo-se dela, com o intento de pervertê-la, transtornando a realidade e a moral; almejando sobreviver em um nível "superior" de imoralidade.
      Essas ideologias, em seus cernes, estão sempre a construir o homem, tornando-o em besta, fazendo-o crer ser um anjo. Por isso não há possibilidades de arrependimento no comunismo, especificamente, pois não há do que se arrepender [em contrapartida, o âmago do Cristianismo é exatamente o arrependimento]. A mente está condicionada e domesticada a tratar dos assuntos sempre pelo crivo da nova moral marxista [ou imoralidade], e, para tanto, não existem contigências que possam julgar e condenar os fins quando obtidos. Eles estão sempre justificando os seus erros com a idéia de que é para o bem de todos, quando, nem todos, ou melhor, a maioria é privada desse bem, seja com suas vidas, consciência, fé, e para isso, o indivíduo não somente tem de ser adestrado mas recriado, para que o coletivo se purifique. É engraçado como uma ideologia que oprime de todas as formas o indivíduo possa apelar para o senso de liberdade ao fazê-lo. E o pior ainda é que muitos acreditam que isso é possível.
     A busca incessante dos fins, sempre "justificáveis", nunca levará o homem a obtê-los, mas a uma guerra persistente e interminável de, delirantemente, querer atingi-lo. Mesmo com todas as evidências contrárias, revelando exatamente o oposto do que o discurso dialético apregoa, o marxista sempre estará disposto a tornar o doce em amargo e o amargo em doce, o bem em mal e o mal em bem. E o novo homem apenas é uma deformação ainda maior da velha e naturalmente corrompida humanidade, fruto da Queda, no Éden.
     Outro ponto que me chama a atenção é a questão da memória, a qual já falei. Mas a capacidade de se lembrar das atrocidades nazistas não tem o mesmo lugar e intensidade quando se trata de lembrar das atrocidades marxistas. Parece que àqueles o perdão é impossível mesmo diante do arrependimento, enquanto a estes tudo é permitido, e não se é requerido o arrependimento e, portanto, o perdão é compulsório e subliminar. O mundo parece estar sempre disposto a execrar o nazismo [no que está certo], mas, incoerentemente, é contemplativo e contemporizador com os "feitos" marxistas, sendo capaz de até mesmo louvá-los.
     O mais impressionante é que o marxismo tem suas origens no cristianismo [uma espécie de anti-cristianismo], o qual, servindo às mentiras de seu "mestre", o diabo, incorporou à retórica elementos nitidamente cristãos, tais como a solidariedade, a piedade, o amor ao próximo, a justiça, etc, para abandoná-los tão logo assumi-se o poder; o que acentua o caráter incoerente e contraditório de cristãos que também são marxistas. Na verdade eles estão prontos e de prontidão para defenderem a ideologia, e nem tanto para defender a doutrina bíblica; e em sua incoerência, esquecem-se dos milhões de cristãos mortos, presos e marginalizados pelos regimes comunistas em toda a história e ainda hoje, simplesmente porque é intolerável ao estado que se creia e adore o Deus ao invés do ídolo, o próprio estado, que deseja se apossar do trono que não lhe pertence nem pertencerá.
     É por isso que em matéria de Cristianismo os chamados cristãos-marxistas não entendem nada do Evangelho, desconhecendo o seu real significado e objetivo que é não tornar o homem perfeito na terra, nem criar o homem ideal, mas que os cristãos sejam exatamente aquilo para o que foram chamados: imitadores de Cristo. Em qual mundo é possível se defender uma ideologia que, em sua história, massacrou e ainda massacra milhões de irmãos? Apenas por amarem o Senhor de suas vidas? Apenas por professarem a fé indestrutível? Apenas por não se sujeitarem a "rezar" na cartilha esquerdista? E não adorarem o deus-estado? E não crerem num falso-salvador? Somente neste mundo caído, e miserável, e cego, e nu, no qual vivemos; em que vale mais dizer o que se quer ser, como uma possibilidade ainda que irreal, do que viver o que se diz ser.
     Não acredito na redenção do homem pelo homem ou por qualquer sistema ideológico. O homem somente será redimido pelo Evangelho de Cristo, pela regeneração que o Espírito Santo operará nele através da Palavra. E o que muitos cristãos esperam é que o estado faça esse trabalho, e o homem seja perfeito dentro de um quadro de impiedade e imoralidade, como se a natureza pecaminosa fosse capaz de produzir algum fruto além do pecado. E esperam glorificar a Deus com isso, com seus trapos de imundície, com uma justiça pessoal, a partir de suas obras, e não com a justiça perfeita e santa de Cristo.
    Não acredito no paraíso na Terra, porém, o que os marxistas almejam é recriar um novo Éden, um céu bizarro onde a injustiça, o anti-ético e o imoral prevaleçam sobre toda a justiça, a ética e moral. Então, eles se utilizam da liberdade, da democracia, das instituições legitimamente estabelecidas para, quando chegarem ao poder, abolir exatamente a liberdade, implantar a tirania e a ditadura, e destruir as mesmas instituições pelas quais foi-lhes possível o acesso ao poder. E os cristãos, aqueles que foram regenerados por Cristo, são os primeiros da lista. E nem é preciso esperar para ver; basta uma rápida pesquisada na história e nos noticiários que nos chegam através de grupos missionários como o "A Voz dos Martires" e "Portas Abertas" para se descobrir que os crentes são tratados como inimigos pelo estado totalitário. E inimigos, devem ser destruídos. 
     Mas graças a Deus que o nosso reino não é daqui; contudo, no reino de justiça do Senhor, aqueles que consentiram com o mal serão responsabilizados, mesmo pelo mal que não fizeram, mas por não combatê-lo; e outros, ainda mais, por se aliarem a ele.

Nota: 1-Escrevi o texto a partir de meus comentários ao livro "A infelicidade do século" de Alan Besançon, os quais podem ser lidos AQUI. Motivado, também, por uma conversa com um querido irmão que votará na Dilma e que é marxista [ainda que ele não se reconheça como tal]. Em nossa conversa, ele disse que a política acabava se reduzindo à escolha entre Serra e Dilma, e que devíamos discutir mais ampliadamente. Por isso decidi expor, ainda que desordenadamente e sem a capacidade necessária, o por quê, no fim-das-contas, temos responsabilidade no que pensamos e dizemos, mas sobretudo no que fazemos. E como fazemos. Ou como deixamos de fazer. 
2-Outro ponto que sempre me chama a atenção quando vou discutir política com crentes é que o Cristianismo pode e deve estar presente em todas as áreas da vida, mas nunca na política. Dizem que a Bíblia não trata de política, logo o crente está proibido de exercê-la em qualquer nível. Mas o Senhor nos ordenou a ser luz em todos os lugares, e não está reservado um lugar intocável para as trevas, no caso, a política. Elas devem ser dissipadas, jamais preservadas; de outra forma, como a verdade alcançará a mentira a fim de destruí-la? 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O julgamento de Deus





















Por Jorge Fernandes Isah

         Se há um absurdo, esse é o de se transferir para Deus a responsabilidade que nos pertence. Em nome de uma pretensa liberdade humana, que nada mais é do que a liberdade de ser livre de Deus, ou autonomia humana, ou a liberdade da indiferença, os proponentes dessa idéia de liberdade, sem a qual não haveria responsabilidade, ao ver deles, transferem-na para Deus quando confrontados com inúmeras passagens bíblicas que afirmam a plena e completa soberania divina. Mais que um disparate, fruto da incompreensão e distorção de conceitos escriturísticos, essa tentativa de defesa é um ultraje.
         O argumento é mais ou menos o seguinte: se Deus escolheu e decidiu tudo, então não se é culpado de nada, logo não se é responsável, e se houver culpa e culpados, Deus é injusto. Aparentemente se tudo, inclusive a ação humana, é determinada pelo Todo-Poderoso, então o homem não pode ser responsabilizado por nenhum dos seus atos, estando desde já inocentado pelo que faz ou vier a fazer. Nesse molde, o argumentador conclui o mesmo que o interpelador de Paulo: “Por que se queixa ele [Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?” [Rm 9.19]. Se tudo foi decretado, até mesmo os mínimos detalhes, pensamentos e desejos, como se pode ser responsabilizado pelo que se faz? Já que ninguém pode resistir-lhe, por que ainda se queixa contra nós? Não seria Deus injusto ao nos condenar por fazer aquilo que não temos como evitar? Que nos é impossível resistir? E que não temos como não realizar? Sem chance alguma de fugir da realidade pré-ordenada? Como ser responsável se não há liberdade na escolha?
       Há de se analisar alguns pontos:
      1)Responsabilidade não pressupõe liberdade, de tal forma que ninguém pode ser livre de Deus simplesmente porque, como diz a Escritura, é ele quem opera em nós tanto o querer como o efetuar segundo a sua boa vontade [Fp 2.13]. Por querer, entende-se a vontade de, ter a intenção de, almejar, anelar, intentar algum ato. Por efetuar, levar a efeito, consumar, realizar ou fazer determinado ato. E o que significa isso? Deus, do alto de sua autoridade como único legislador e administrador do mundo, decretou, ordenou e exigiu que todas as coisas se cumprissem segundo a sua vontade; porque “fez tudo o que lhe agradou” [Sl 115.3].
       É o que Jó também diz: “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará. Porque cumprirá o que está ordenado a meu respeito, e muitas coisas como estas ainda tem consigo. Por isso me perturbo perante ele, e quando isto considero temo-me dele. Porque Deus macerou o meu coração, e o Todo-Poderoso me perturbou” [23.13-16].
     Jó não vê a chance de sequer argumentar com Deus; de tentar dissuadi-lo de abandonar o seu propósito eterno; até porque reconhece que o Senhor ordenou tudo a seu respeito, e de que tudo ordenado se cumprirá infalivelmente. E quando considera essa situação,    ao invés de se revoltar ele teme e se perturba, porque tudo o que o Senhor quiser, assim fará, independente do homem ser livre ou não, porque como está escrito, não depende de quem quer ou quem corre, mas de Deus querer ou não [Rm 9.16]. Ao ponto em que Jó teme e se perturba, pois sabe impossível não acontecer o que Deus decidiu, e ele não arvora para si nenhuma inocência ou não-responsabilidade, e reconhece que Deus o macerou. Macerar aqui tem o significado de sujeitá-lo, de submetê-lo à vontade divina, colocando-o completamente sob o seu domínio. E mesmo se considerarmos o termo como sinônimo de dilacerar, afligir, não estaríamos errados, pois parece ser também esse o sentimento de Jó ao reconhecer-se perturbado.
      2)O livre-arbítrio ou libertarismo propõe que os indivíduos escolhem, agem e são moralmente responsáveis pelas suas escolhas e ações, e para isso é necessário que ele possa escolher fazer “A”, mas também possa evitar e não escolher fazer “A”. Ele teria o que se chama de “controle duplo da vontade”, de se poder ir para uma decisão ou outra pela “liberdade da indiferença” ou seja, a capacidade de escolher entre duas alternativas sem  inclinação ou tendência tanto para uma como para outra. Partir-se-ia da neutralidade, da isenção, sem qualquer coerção externa ou interna. Isso é simplesmente impossível, pois nenhuma decisão é neutra, e nem é possível sê-la [1]. Acontece que todos os homens, sem exceção, “se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só” [Rm 3.12]. Ora, estando debaixo do pecado, como se pode ter a mesma capacidade de escolher entre o bem e o mal? Entre o certo e o errado? 
       3)A melhor definição para responsabilidade é a que define-a como a obrigação de responder pelas ações próprias; o dever de dar conta de alguma coisa que se fez ou mandou fazer. Em linhas gerais é imputar, atribuir acerto ou erro a alguém pelo que se faz, pelos atos que praticou. Não há implicação em se ser livre para se ser responsável. Ainda que os elementos objetivos ou subjetivos que o levaram a tomar a decisão estejam implícitos na decisão. Ela não aconteceu por si só, mas pela vontade do indivíduo. Mas essa vontade não é livre, nem livre de causação. De tal forma que a causação ou coerção sobre a vontade do homem não elimina a sua responsabilidade.
      Com essas idéias em mente, por que o defensor da liberdade humana, para se ser moralmente responsável, diz que não havendo liberdade o homem não pode responder por seus atos? E se for, Deus é injusto?
     De certa forma, esse advogado defende uma causa errada, porque Deus, e não o homem, é quem estabeleceu o que é justo e injusto, o que é certo e errado, o que é bom e mau, e assim todas as coisas são ordenadas conforme a sua sabedoria, sem que nada possa escapar ao seu juízo. O que acontece é que ele não está disposto ou inclinado a reconhecer a verdade. Com isso não estou excluindo-o do rol dos santos. Não é isso. Há equívocos, e mesmo os grandes heróis da fé os cometeram: Noé, Abraão, Davi, Pedro, João, etc. E nem por isso foram eliminados da fé uma vez dada aos santos[Jd 3]. O que estou a dizer é que, de alguma maneira, a verdade é-lhe tão dura, inflexível, humilhante e dolorosa que prefere se contentar com a mentira ou com uma falsa-verdade. E ele é responsável por isso, não Deus; mesmo que esteja fazendo-o com a melhor das intenções: absolvê-lo de ser o autor do mal.  
     Quando o determinismo bíblico é levantado, e a questão da liberdadeversus responsabilidade deixa de estar na esfera humana para se encontrar na esfera divina, as coisas se tornam claras, e fica evidenciada a verdade bíblica. O determinismo bíblico é comumente confundido com fatalismo, que nada mais é do que “forças” indefinidas como o destino, o azar, a sorte, o acaso, etc, agirem e determinarem todas as coisas. O fatalismo é aleatório, injusto, imperfeito e não tem nenhum caráter onisciente e providente. Já o determinismo estabelece que Deus é quem ordenou e decretou todas as coisas no universo, de tal forma que elas acontecem por sua sabedoria, santidade e perfeição, segundo a sua vontade, uma vontade providente que levará a cabo o final decidido e fixado por ele no transcorrer do tempo e da história. Enquanto o fatalismo é impessoal, o determinismo é pessoal. Enquanto o fatalismo é imperfeito, o determinismo é perfeito. Enquanto o fatalismo é indefinido, não tendo uma causação delimitada, o determinismo tem como causa primeira o próprio Deus, e por ele é posto em execução.
       Mais do que buscar um sentido moral no homem, o sentido moral está no Todo-Poderoso o qual estabeleceu o que venha a ser moral e imoral, bem e mal, certo e errado, verdade e mentira... E isso tem-se de entender: por mais que se queira proteger a Deus, não podemos ser tolos ao ponto de considerar que alguma coisa pode ter sido criada alheia à sua vontade, ou sem que quisesse. Se tal ocorresse, não estaríamos a falar de Deus, mas de deuses. O fato de todas as coisas existirem, e nelas incluídas o mal, o pecado, satanás e seus demônios, o inferno... acontecem por deliberada resolução divina. Não passiva, mas ativamente. Não que um problema tenha-lhe sido colocado nas mãos para resolver sem que esperasse ter de resolvê-lo, mas todas as coisas existem por sua vontade e estão postas diante de si mesmo antes de existirem; muito antes de haver o problema, Deus já tem pronta a solução.
       Então se Deus determinou tudo, como o homem pode ser considerado responsável por aquilo que fez, mas que não poderia deixar de fazer?
      Foi assim que um inquiridor cínico interpelou Paulo: “Por que se queixa ele[Deus] ainda? Porquanto quem tem resistido à sua vontade?”. Ao que Paulo respondeu: “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição. Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, os quais somos nós, a quem também chamou...?” [Rm 9.20-24].
      Não há a menor chance de tentar fazê-lo responsável pelo que somos ou realizamos. A alegação de que algo foi feito sob coerção impossível, visto vir do decreto e da determinação de Deus em nada ajudará o indivíduo, nem poderá absolvê-lo. Usar essa desculpa não o fará inocente diante de Deus. A culpa está no ato praticado, e quer se queira ou não, fazemos o que queremos, pois o fazemos. Se os nossos atos estão em comunicação direta com a nossa vontade, a qual decidirá efetivamente o que se tornará real, não importa se a vontade é dirigida ou não; importa que o faremos por querer, e assim procedemos em cumprir a nossa vontade. A coerção é um detalhe irrelevante, visto Deus condenar o homem não por ser constrangido ou não, mas por praticar o mal. Se praticar o mal, por coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Se praticar o mal, sem coerção, o que determinará a condenação será o ato praticado. Seja um ou outro, o que definirá a culpa ou não será se o homem transgrediu ou não transgrediu a Lei de Deus. Portanto os homens ficarão sempre indescupáveis, pois tendo o conhecimento de Deus, “não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu” [Rm 1.21].
      Porém, há um agravante. Quando julgamos a Deus [“Por que se queixa ele ainda?], incorremos novamente na completa impossibilidade de nos tornarmos desculpáveis diante de dele, pois, “és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro, fazes o mesmo” [Rm 2.1]. Se Deus aqui julga os hipócritas, aqueles que condenam os que fazem exatamente o que eles mesmos fazem sem que profiram condenação a si mesmos, o que dirá daqueles que pretendem, ainda que inconscientemente, julgar o Senhor? Se tornarão indesculpáveis, condenados pelo próprio pecado, pelo ato de supor ou formar um conceito errôneo a respeito de Deus, e de quererem enquadrá-lo em seu esquema imperfeito e injusto. Acusar o Senhor disso ou daquilo em nada facilitará as coisas para o homem, pois não somos responsáveis segundo o nosso padrão, nem seremos julgados por ele, mas exclusivamente por aquele que tem toda a autoridade e poder para julgar.
       Deus pode condenar? Sim. Pode absorver? Sim. Criou as regras? Sim. Há outro julgamento igual ou mais perfeito que o dele? Não. Há possibilidade dele errar? Não. De ser injusto? Também, não. Então, por que não se reconhece que, sendo Senhor e Criador de todas as coisas, pode controlar nossas decisões? E de que, mesmo sob o seu controle, continuamos responsáveis pelo que fazemos? O princípio da responsabilidade está na autoridade divina e não na liberdade, porque o homem jamais será livre de Deus, mas Deus sempre será autoridade sobre o homem. E ninguém poderá alegar injustiça, porque Deus não é injusto [Rm 9.14]de maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” [Rm 14.12].

Nota: [1] Para saber mais sobre a incoerência do livre-arbítrio, clique AQUI

O dia em que Cristo me fez














Por Jorge Fernandes Isah   


     Hoje comemoro a data mais importante da minha vida. Não foi o meu nascimento na maternidade, nem o meu casamento, nem a vinda dos meus filhos, formatura ou qualquer outro evento que marcou a vida. Não que essas coisas sejam sem importância, não é isso. Elas são fundamentais, e devemos comemorá-las na proporção da felicidade e alegria com a qual Deus nos presenteou-as, como dádivas, como prova da sua bondade para conosco. Mas a prova maior do seu amor está em que "Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" [Rm 5.8]. E foi, exatos seis anos, no dia 12.10.2004, que Cristo me resgatou no tempo, convertendo-me a si. Sei que a minha salvação é eterna, determinada por Deus antes da fundação do mundo, escolhido por ele para sempre, mas apenas tornou-se minha conhecida naquela data.
     Parte de como era a minha vida e os meus pensamentos estão registrados no texto entitulado "A Morte da Morte", o qual pode ser lido aqui mesmo no Kálamos. Não vou entrar nos detalhes de como eu era, e nem é preciso. A Bíblia claramente assevera que, como todos os homens, eu não era justo, não entendia e nem buscava a Deus. Estava extraviado, e me fazia inútil; não fazia o bem. Minha garganta era um sepulcro aberto. Minha língua tratava enganosamente; peçonha de áspides estava debaixo dos meus lábios. A boca cheia de maldição e amargura. Os pés caminhando ligeiros para derramar sangue. Em meus caminhos havia destruição e miséria; e não conhecia o caminho da paz; nem havia temor de Deus diante dos meus olhos [Rm 3.10-18]
     Mesmo não realizando alguns desses males, aos quais o apóstolo Paulo se referiu, e os profetas também relataram, todos os pecados estavam possíveis diante de mim, e somente não foram concretizados porque Deus não me deixou ser tudo o que eu poderia ser como pecador. Ele me poupou de levar à cabo toda a loucura e impiedade que estavam dispostas em meu coração, latentes a esperar o momento adequado para se manifestarem; e não ser ainda pior do que já era. 
     Como o pecado nos cega, eu estava cego, e me considerava o único dos homens que valia alguma coisa; e desprezava todos, sem exceção, e aqui posso incluir até mesmo a minha família. Basta alguns minutos de bate-papo com a minha esposa para se perceber o nível de corrupção em que minha alma se encontrava. Eu era um tolo considerando-me sábio. Apelava para uma sanidade impregnada de loucura. Para uma saúde doentia. Uma perfeição mergulhada na imperfeição; atolada na corrupção mais que possível. E eu não queria ver. Não podia ver. O pecado me impedia de olhar para mim mesmo e encarar a realidade. Por isso, ele criava ondas de ilusão e delirio que me mantinham preso a uma imagem desconstruída e mal-formada, a manter preservada a impiedade naturalmente disforme, e a formar cada vez mais o espectro do homem caído, cheio de si mesmo, em minha própria insuficiência.
     Alguém poderá dizer: "mas que exagero! Ninguém é assim tão estúpido e tão mal". Mas pode acreditar, até o momento em que Senhor me restaurou, não há palavras suficiente para descrever o estado de corrupção, inaptidão e loucura da minha alma.
     Havia passado a noite em claro, e por alguns dias, esta foi a minha rotina. Dormia duas, três horas por noite, intermitentes e atormentadas. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, colocará-me contra tudo e todos. Havia apenas eu, e mais ninguém. Interessante que não havia problemas na minha vida, nada que justificasse o estado angustiante em que me encontrava. Não tinha problemas financeiros além do normal; pequenas dívidas a serem pagas parceladamente. Não havia problemas de saúde na família. Ou algo de grave e insustentável. O problema era eu, e somente meu. Nutria uma paranóia que colocava todos contra mim, e eu me defendia de nenhum ataque, odiando-os e jurando vingança. Até que, naquela noite, uma idéia desesperadora foi-se formando, e passadas algumas horas, já estava decidido; havia encontrado a solução final. E qual era? Abandonar tudo e todos, fugir, sem deixar rastros, e ir longe o suficiente para me livrar da dor que me consumia. Se eles eram o problema, nada mais natural do que afastá-los.
     À medida que o tempo passava, e o silêncio era entrecortado por um veículo ou outro cruzando a rua, por uma voz ou outra solitária, eu estava cada vez mais decidido de que aquela era a solução. Estava na sala, a tv ligada, as cores de um filme se misturando à escuridão da mente. 
     Foi quando vi aquela pequena Bíblia católica[1]. Dez anos antes, minha esposa me presenteara com aquele exemplar, o qual abri e li apenas a dedicatória. Fechei-a novamente; e em Fevereiro ou Março de 2004, o meu desespero e a falta de opções levou-me a abri-la. Comecei pelos Evangelhos, de Mateus e João. Não lia diariamente, as vezes passava até semanas sem ler. Nos piores dias, lia quase incessante. De alguma forma, eu sabia que ali estava a solução, mas não queria aceitá-la. De alguma forma, Deus me levou a ler a sua palavra, mesmo contra a minha vontade. A última coisa que eu poderia imaginar seria a volta ao evangelicalismo, do qual fiz parte na adolescência, por dois anos. Durante mais de vinte, eu nutria um ódio e uma aversão por crentes tão grande que nada mais suplantava esse desprezo, por eles, suas igrejas e seus cultos escandalosos. Se alguém vinha falar de Jesus, eu o repelia imediatamente. Se queriam me entregar um folheto, eu recusava com cara de poucos amigos. Era grosseiro, desaforado e rude ao extremo no trato com qualquer que se aproximasse com o intuito de apresentar o Evangelho. Fugia de qualquer contato, e tinha-os como inimigos declarados. Aprouve a Deus, portanto, utilizar a sua palavra, apenas a sua palavra, através daquela pequena Bíblia, para operar em mim o novo-nascimento. E foi o que aconteceu. Durante meses, ela foi a única ligação que tive com Deus. E a única que admiti ter.
     Naquela madrugada, ao vê-la, peguei-a, e abri aleatoriamente. Em Gálatas, 2. Não me lembro ao certo, mas acho que comecei a ler no verso 16. E quando estava no verso 20, aconteceu algo que não consigo explicar. Foi como se uma força poderosa me lançasse ao chão, me pusesse de joelhos, a cabeça curvada ao peito, e um choro convulsivo a derramar lágrimas no rosto. Em minha mente havia apenas arrependimento por toda uma vida que desagradara a Deus. Por uma vida jogada fora, de inimizade, de rebeldia. Em que pequei, e pequei somente contra Ti; e meus pecados estavam diante de mim [Sl 51.3]. Eu dizia ao meu Senhor: Perdoa-me! Perdoa-me! Por todos os meus pecados; por tê-lo desprezado e rejeitado. Perdoa-me! Reconhecendo-o como Senhor e Salvador da minha vida. 
     Chorava, por mais ou menos meia-hora [foi o que me pareceu], não parei de chorar e de clamar o seu perdão. Subitamente, assim como a primeira lágrima, veio-me uma paz que não sabia explicar. Senti-me aliviado, e toda aquela dor passou e nem me lembrava mais dela. Havia uma segurança, uma certeza de que minha vida estava mudada, e de que seria outro homem. Como disse, não me veio nada claramente explicado, mas eu sabia, estava acontecendo. Cristo me convertera, se apiedara de mim, e mesmo na minha completa ignorância, mesmo que eu não lhe tivesse pedido nada, ele fez; e naquele exato momento, pude sentir o seu amor. Enquanto isso, lá fora, uma profusão de foguetes explodiam em homenagem à santa, uma imagem de barro, feita por mãos humanas, mas eu sabia que mais do que isso, aqueles foguetes revelavam a alegria nos céus por um pecador que se arrependia [Lc 15.7]. E, por incrível que pareça, eu tinha certeza de que todo aquele barulho, uma overdose sonora, era para que me fosse distinguido, impregnado aos tímpanos, entranhado na mente, que Cristo havia morrido por mim, e de que agora, e para sempre, eu seria seu e de mais ninguém. 
     Levantei-me. Sentei-me. Olhei o relógio. Seis e vinte. Peguei a pequena Bíblia, e recomecei a ler Gálatas. Desde o princípio. Quando novamente li o verso 2.20, não pude conter as lágrimas e, chorando convulsivamente, orei ao Senhor, fazendo o meu primeiro pedido de que, assim como Paulo, um dia pudesse dizer: "já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim". E aquela afirmação do apóstolo eu sabia verdadeira e possível para Deus, que a tornaria verdadeira e possível na minha vida, ainda que não entendesse como; mas estava impregnado da certeza de que, um dia, eu seria assim como ele é. 
     Dias depois, minha filha, então adolescente, conversava com minha esposa e meu filho, e disse: "dormi com um pai e acordei com outro". Tive confirmado o que já sabia, que a promessa em Gálatas estava se cumprindo, se cumpriria, pois Deus predestinou-nos a ser conforme a imagem do seu Filho, "a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos" [Rm 8.29]. Não para a nossa glória. Mas para a glória de Deus, que nos gerou como a filhos amados.
     Neste momento, em que termino este texto, ouve-se ainda o foguetório; a espocar insensatos pelos homens que detém a verdade   em injustiça. Então, esqueço-os, para agradecê-lo por ser-lhe servo e tê-lo por Senhor; para louvor da glória de sua graça, pela qual me fez agradável a si no Amado [Ef 1.6].
           "Em louvor, e honra, e glória, na revelação de Jesus Cristo" [1Pe 1.7].
     Nota: [1] Quando digo Bíblia católica, refiro-me ao exemplar impresso e publicado pela Edições Loyola, que à exceção dos livros e acréscimos apócrifos é a mesma santa palavra de Deus.