quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Haraquiri teológico - Parte 2: a ignorância não protege ninguém!














Por Jorge Fernandes Isah

A doutrina do "não-senhorio de Cristo"[1] nada mais é do que a repaginação de outra distorção, uma nova vestimenta para algo velho também chamado de antinomismo [gr. Anti=contra + Nomos=lei, literalmente quer dizer contra a Lei], em que a obediência consciente, objetiva e voluntária à Palavra de Deus é confundida com o legalismo, e assim se tem uma justificativa para se transgredir a Lei, assumir a imoralidade, destruindo os fundamentos essenciais do Cristianismo, de forma que a igreja se torne ineficaz, não ultrapasse o limite que a torne em sal e luz em meio a uma sociedade transgressora e que cada dia mais rejeita qualquer noção, por menos que seja, proveniente da revelação divinamente expressa. É uma nova tentativa de anular o Evangelho e a obra completa de Cristo na vida do eleito; de anular o Evangelho e obra de Cristo na igreja; de anular o Evangelho e a obra de Cristo no mundo. Esses homens pregam o antievangelho, cujo fim é a morte.

O problema está sempre em abandonar aquilo que a Escritura diz e que foi corroborado através dos séculos pela igreja. Uma interpretação que suprima um princípio ou descontextualize a Bíblia implicará na heresia ou no erro [ambos se misturam de tal forma que é difícil separá-los, ainda que se tente fazê-lo tenazmente]. E aqui encontramos dois pilares do Cristianismo que têm sido alvos dos inimigos de Deus, os quais muitos que se dizem cristãos combatem ferozmente: a Escritura como palavra divinamente inspirada, inerrante e infalível, e a igreja. Não é interessante o empenho de quem diz ser a Bíblia a sua regra de fé, mas colocam-na sempre em dúvida? E igualmente interessante que exista uma igreja universal e celestial mas sem a necessidade de que haja um corpo local? Diz-se normalmente que a igreja é formada pelos salvos, de que são os homens e não os templos construídos por mãos que tornam-na igreja. E nisto, eu concordo. Porém, não é estranho que a igreja, para eles, seja um agrupamento etéreo, metafísico, diáfano, apenas formado pelas almas/espíritos dos eleitos? Sempre penso: onde entra o corpo nesse esquema, visto serem os homens formados por corpos/almas? Parece uma igreja de ficção científica, possível de se idealizar, mas impossível de se realizar aqui neste mundo.

Acontece que tem de haver uma fragmentação, dissociação, ruptura, na doutrina bíblica para poder se criar algo tão equivocado como a teologia do não-senhorio de Cristo. Seria o mesmo que se querer um cristianismo sem Cristo, onde ele apenas nos salvaria sem jamais ser o nosso Senhor. Seria negar toda a Escritura em seu princípio mais evidente: Cristo como Senhor e Salvador. Na maioria das vezes em que Cristo é apresentado na Escritura é-o  como Senhor e como Salvador. A profusão de vezes em que a Bíblia se refere a Deus como Senhor é esmagadoramente maior do que quando ela se refere isoladamente a ele como Salvador. Em quase todas, quando se utiliza a designação Salvador para Deus, ela vem associada à palavra Senhor. É uma prova incontestável de que Deus não pode apenas salvar a quem não está debaixo do seu senhorio. Assim é-nos revelado que para sermos salvos é necessário que sejamos também escravos de Cristo. Separá-lo nada mais é do que se criar um outro cristo, um cristo não bíblico, parte de um cristianismo não-bíblico, não revelado; e que nem mesmo pode ter um "reino" visto não haver súditos para formá-lo. Penso que o autonomismo e a ignorância, tão vivamente difundidos nos últimos séculos, têm levado o homem a uma ruína cada vez maior, pois o tem lançado em um labirinto onde não há saída ou, quando muito, as "saídas" tem-no tornado ao mesmo lugar. Permanece-se o círculo vicioso em que o indivíduo necessita desesperadamente de ajuda mas não a quer, porque sequer imagina-se capaz de precisar dela; em sua autosuficiência ele definha-se enquanto se imagina enrobustecer.

Imaginemos um rato enjaulado. Ao se abrir a portinhola da gaiola, o que ele fará? Ainda que tenha nascido na gaiola e não conheça nada além dela, mesmo que se gaste algum tempo, ele se aventurará pela porta que o levará à liberdade. No caso do homem, ele não reconhece a porta, não a vê, e prefere manter-se preso entre as grades. Ele não admite que pode fazê-lo, e por isso não faz; então bate a cabeça nas grades, lança-se ao chão, escala as paredes e se joga lá do alto, corre desarvoradamente no cubículo, mas não pode ver a abertura que o tirará dali. A sua própria incapacidade de perceber o que é bom, legítimo e verdadeiro, coloca-o na única opção possível: perceber apenas o falso e enganoso, explorando-o à exaustão. Com isto não quero dizer que os ratos são melhores ou mais capacitados do que o homem, porque os ratos não vivem a realidade humana, nem estão afeitos às mesmas consequências que o homem. O rato não é um ser moral, não toma decisões morais, nem pode sofrer por tê-las ou não, já que não as têm. O rato não tem uma consciência que vá além das suas necessidades básicas: a sobrevivência. Ainda que seja um animal social, ao viver em bando, questões como o bem e o mal não lhe afetam, nem o move a decisão, mas apenas e tão somente a subsistência do bando. De certa forma, o bando é o "indivíduo" pelo qual o rato vive e existe. A sua realidade é outra; a sua liberdade é outra; o que o leva a sair não é o mesmo que leva o homem a ficar, ou o moveria a escapar; pois o homem, ao contrário do rato, é um ser moral, mesmo que ele a rejeite ou viva imoralmente. O fato de se ser imoral pressupõe a existência de uma moral, de forma que a imoralidade nada mais é do que a rebelião. E essa revolta é contra o próprio Deus, visto ser ele quem estabeleceu quais são os princípios  morais e a ordem do homem ser dirigido por eles. Não há escolha! Portanto, quer se queira quer não se queira, o homem é e sempre será um ser moral; e toda a sua vida será guiada pelo desejo de se manter obediente a ela ou não. Apelar para a imoralidade representará apenas a não-obediência, como uma decisão que está anos-luz da ideia de neutralidade ou melhor, da ideia de nulidade ou de aniquilação da moral. A moral subsiste no homem, independente dele reconhecê-la ou não. Por isso a questão do homem que não pode ver a porta que o levará à liberdade é ainda mais grave: ele não a alcança exatamente porque sua consciência moral foi de tal forma afetada pelo pecado que o tornou escravo do pecado; mesmo que estivesse livre para fugir, não conseguiria.


Mas qual seria essa liberdade que o homem despreza?  Cristo, ora! pois, "o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade" [2Co 3.17]. Sem o agir do Espírito, o homem não verá a abertura, ainda que esteja tão próximo que, dado um passo, o levaria à liberdade; mas esse passo ele não pode dar por si mesmo. Foi o que o Senhor disse: "Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" [Jo 8.31-32]. E Paulo complementou, referindo-se exatamente ao senhorio de Cristo: "Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos" [At 17.28]A vida de muitos é simplesmente mentirosa, falsa, de maneira que estão aprisionados em uma realidade atroz, sem chance de saírem pelos seus esforços. Eles permanecerão inúteis, e gastar-se-ão até à morte. Por isso, quando as pessoas dizem: "vou comprar uma Bíblia que tenha uma linguagem mais atual", eu entendo que isso signifique algo que seja diluído à exaustão até não haver mais mensagem alguma ali, de maneira que a ignorância seja alimentada e privilegiada... E para se ser ignorante, não é preciso muito esforço.

Quando as pessoas recusam-se a ler e estudar, se informarem além das ondas do JN ou da sopa de letrinhas dos tablóides diários, não querem nada além do manterem-se protegidos na ignorância.

Quando sites, blogs, livros, programas e workshops ditos cristãos refletem apenas a escuridão que há no homem, rejeitando completamente o Espírito revelacional, se tornam em farsantes como muitos insistem em não se assumir; tudo como parte de uma espiritualidade doentia e maligna.

A questão é que a ignorância não protege ninguém, antes lança-os no covil dos lobos, e ali, sem nenhuma proteção, além de serem assaltados serão devorados rapidamente. Vivemos tempos de privilegiar a desinformação, de privilegiar as sensações, de privilegiar tudo aquilo que pode tirar o homem da sua realidade, de forma que ele não a veja, e seja transposto para um local ainda mais escuro, tão escuro que ele é capaz de tropeçar nas próprias pernas. A Bíblia chama esse lugar de trevas, privação completa de luz. E a luz é Cristo, também chamado de a Palavra, na Escritura.

O que muitos distorcidamente alegam é que Cristo, como sendo a Palavra, não é necessariamente a palavra revelada expressamente; como se pudéssemos dissociá-lo da sua revelação, a mesma revelação que o revelou a nós. O próprio significado de "Palavra" para essa turma pode ser qualquer coisa: o espasmo de um cão hidrófobo, o suspiro de um gato preguiçoso, ou a letra "inspirada" da última sensação musical, ou qualquer lixo produzido sob inspiração diabólica. Deus pode falar ao homem de várias formas não autorizadas, e isso não é ignorância mas um alto nível de espiritualidade, ao ver deles; mas afirmar que ele se revelou integral e exclusivamente através da sua palavra inspirada é o atestado de estupidez, ainda ao ver deles. Paulo, inspirado divinamente, disse: "Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus" [1Co 1.18]. O que me leva a pensar: o que eles têm verdadeiramente? Além de si mesmos? Nada. E o que podem contribuir com o que têm? Nada. E ainda assim fazem péssimo uso do que têm; porque "àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado" [Mt 13.12].

O único meio de se chegar ao conhecimento de Cristo é através da Escritura, que por ele foi-nos revelada, sendo ela a sua palavra. Mas as pessoas consideram possível tê-lo sem ser necessário tê-la; só é preciso que expliquem a si mesmas como se é possível conhecê-lo sem que ele seja revelado pela única fonte capaz de mostrá-lo. São as sutilezas do mal, como se houvesse delicadeza nas presas mortíferas de uma serpente.

Por isso, esse ideal maligno e rebelde de se ser salvo sem se ter um Senhor não pode continuar dragando vidas impunemente. Tem de ser revelado como aquilo que é em toda a sua desonestidade, imoralidade, como uma calamidade, uma desgraça que levará ao declínio, à degeneração, à impossibilidade real de consciência daquilo que se é e do que se precisa para deixar de ser, e se tornar no que se deve ser: igual, semelhante a Cristo. Ao se manter o homem numa espécie de satisfação doentia, um torpor psicótico com o pecado, está-se impossibilitado de viver a vida como Paulo nos disse que deveríamos viver, assim como ele vivia: "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim" [Gl 2.20].


O que todos os alvoroçados com a falsa representação mental de que se pode ser algo sem ser necessário sê-lo ainda não descobriram é que, como naquela velha história do cobertor curto, se cobre-se a cabeça, descobre-se os pés e vice-versa. Deus somente realizará a sua obra segundo os seus princípios, as suas normas e, por mais atraentes que possam vir a ser qualquer plano arquitetado pelo homem, devemos reconhecer que ele não é o plano divino. Sendo imperfeitos, pecadores e desobedientes, manejaremos aquilo que favorecerá a nossa imperfeição, pecado e rebelião. Ou seja, aperfeiçoaremos o imperfeito de forma que ele se tornará cada vez mais imperfeito. Seria como alguém diante de um doente, sem saber efetivamente o mal que lhe acomete, manejando uma prateleira de substâncias diferentes também sem conhecê-las, sem ao menos poder identificá-las, pois não apresentam rótulos. Certamente ele administrará um remédio que não curará o doente, piorando o seu estado. Sem saber quem somos e porque somos, qualquer solução será perigosa quando não mortal. Apenas Deus nos conhece, e tem o remédio na proporção correta e eficaz, capaz de curar. Desprezá-lo, e entregar-se aos seus próprios devaneios e loucuras, é o mesmo que considerar um privilégio estripar-se a si mesmo. E o haraquiri[2] nunca absolveu alguém, antes o que ele deixa evidente é a condenação.

Nota: [1] Leia a primeira parte deste texto AQUI
[2] Haraquiri - Técnica de suicídio praticada por membros da classe guerreira japonesa. A pessoa que comete haraquiri faz uma incisão em seu abdome, de determinada maneira prefixada, e estripa-se a si mesma. O termo japonês para designar esse ritual é Seppuku.
[3] Este texto é uma ampliação ao que foi publicado no blog "Cotidiano Cristão", cujo título é "Como ser 'salvo' e ainda ir para o inferno!"
[4] Indico, como complemento, a leitura do texto "O que não é, pode não ser mesmo, se não for. Mas, e se for?", bem como o livro do pr. John MacArthur Jr. "O Evangelho Segundo os Apóstolos", publicado pela Editora Fiel.
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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Haraquiri teológico - parte 1: um reino sem súditos!


















Por Jorge Fernandes Isah


Existe um movimento em progressão na igreja, que é a própria negação da igreja, e se resumiria na adequação e acomodação dos conceitos mundanos a uma suposta vida cristã, não revelada como o sábio e perfeito conselho de Deus, pelo contrário, repudiada e condenada pela Escritura. Infelizmente a maior parte dos ataques que a igreja cristã sofre atualmente provém de suas próprias fileiras; o joio, misturado ao trigo, tem-se levantado para desarraigar o que Deus plantou, e assim fazer da igreja uma extensão do mundo, uma espécie de sanitário aparentemente higienizado e perfumado, mas que se resumiria a um local onde as pessoas defecam pelo chão e se esfregam nas paredes para limparem-se. Seria um local onde alguns poderiam amenizar suas dores, mas que não vai além de um a um paliativo, um anestésico que aplicado sistêmica e subliminarmente, afasta-os do Evangelho, impedindo-os de reconhecer a verdade, acomodando-os à má-consciência, à mentira deslavada e vergonhosa, como toda mentira. O problema é a impossibilidade de se limpar um cômodo enchendo-o de lixo e entulho; da mesma forma, a alma humana somente pode ser despoluída pelo puro Evangelho, que trará ao homem doente a cura através do arrependimento pelo qual vem o perdão: "Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos de refrigério pela presença do Senhor" [At 3.19] [1]


Os agentes infiltrados têm por objetivo levar a cabo o plano de tornar irrelevante o conselho do próprio Deus para os homens; e é dessa forma que os idealizadores do movimento agem [ainda que muitos adeptos não se aperceberam disso, cegados e iludidos pelos apelos do próprio coração]. Como Paulo nos alertou: "Porque eu sei isto que, depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não pouparão ao rebanho, e que de entre vós mesmos se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si." [At 20.29-30]


Mas do que estou falando? De uma corrente que se diz evangélica e que trabalha laboriosamente contra o Evangelho chamada “movimento do não-senhorio de Cristo”.


Em linhas gerais, para quem ainda não sabe, este grupo afirma que alguém pode ser salvo sem a necessidade de se apresentar um fruto sequer. A salvação, pela graça, em si mesma não está atrelada à santificação ou ao testemunho que o salvo deveria dar, nem aos frutos que deveria produzir. De tal forma que, contrariamente ao que a Bíblia afirma, o cristão pode ser salvo mesmo sem arrependimento, sem fé, sem testemunho, sem saber que foi salvo, sem mesmo querer sê-lo, bastando-lhe apenas e tão somente a graça de Deus; uma graça que pode passar completamente desapercebida, e pela qual não se terá nenhum sentimento de gratidão. É como se eu usasse uma mesma camisa todos os dias, sem tirá-la do corpo, sem a concepção de que ela exista. Ou comesse atum todos os dias, em todas as refeições, e jamais me apercebesse do que estava comendo, e mesmo da existência do próprio atum. É claro que são fíguras de linguagem precárias, especialmente quando se refere à salvação, mas a ideia de um crente completamente alheio à sua salvação é algo muito mais absurdo ainda. 


O que torna essa falsa doutrina algo realmente perigoso é o fato dela conter parte da verdade, de ter em seus princípios algo verdadeiro, mas que somente está ali para facilitar o estratagema enganoso de capturar os incautos para um sistema completamente falacioso, perverso e maligno. Uma mentira, ainda que tenha elementos verdadeiros, continua e permanece uma mentira. Basta uma lida na passagem em que o Senhor Jesus é tentado no deserto pelo diabo [Mt 4.1-11] para se perceber como a astúcia, a habilidade para o mal e para o engano,  pode-se confundir com a verdade, camuflando os seus reais intentos. Como alguém já disse alhures: meia-verdade é mentira inteira!


Sabemos que a salvação é dádiva e favor completamente divinos, onde o homem não pode participar de maneira alguma, sendo apenas o alvo de toda a obra redentiva planejada e executada por Deus.  Não se pode colaborar em nada com ela [Ef 2.8-9]. Mas ela pressupõe um processo, ainda que tenha sido decretada eternamente. E esse processo também é decretado, de tal forma que o salvo terá fé, arrepender-se-á, será regenerado, santificado, e dará frutos para a glória de Deus [não nesta seqüência, necessariamente]. Portanto, um salvo não precisará das obras para a salvação, mas as obras confirmarão a sua salvação. Portanto, nós, os salvos, somos feitos do alto,  "criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas" [Ef 2.10]. Em outras palavras, os frutos não precedem a salvação, mas a sucedem, de tal maneira que por eles é possível se saber a sua procedência. Como o Senhor nos diz: Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons. Toda a árvore que não dá bom fruto corta-se e lança-se no fogo. Portanto, pelos seus frutos os conhecereis” [Mt 7.16-20].


Alguém poderá dizer: “mas, nessa passagem, Cristo está a falar dos falsos profetas e mestres”. É verdade, mas ela serve perfeitamente para os cristãos também, porque se é possível distinguir o engano e a mentira através dos maus frutos, é-se possível distinguir a verdade através dos bons. O cristão dará bons frutos que revelem a sua semelhança com Cristo e a sua filiação ao Pai. 


O que o movimento do “não-senhorio de Cristo” proclama é que Deus salvará o homem ainda que ele não saiba, não queira, e não seja capacitado a testemunhar a sua eleição. Poderá mesmo continuar tão ímpio que não haja diferença em sua natureza. Mas tudo isso é avesso e alheio à verdade, ao que a Bíblia nos revela, porque o homem, para ver o reino de Deus, terá de nascer de novo. Foi o que Cristo disse a Nicodemus: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” [Jo 3.3]. Da mesma forma, o Senhor também disse que seriamos reconhecidos como seus discípulos se amássemos uns aos outros [Jo 13.35]; ou seja, os frutos são uma espécie de atestado daquilo que somos, do que nos tornamos pelo poder Deus. Se o homem mantém a sua velha natureza e não reconhece a necessidade do arrependimento, do perdão divino, e de se sujeitar ao senhorio de Cristo, esse homem permanece morto em seus delitos e pecados [Ef 2.5], e carece de ser vivificado por Deus.


É estranho que haja entre aqueles que se dizem discípulos de Cristo quem defenda o não discipulado a um salvo. O argumento é autocontraditório, pois se é-se discípulo de Cristo, recebe-se o ensino de Cristo, e com ele aprender-se-á. E se dizem que o discipulado é desnecessário, em si mesma essa afirmativa já é um ensino, um ponto ou princípio definido por um sistema de crenças, que foi ensinado e aprendido. Na verdade, essa é a condição para se proteger de maneira eficaz todo o sistema distorcido e inválido do "não-senhorio de Cristo", de forma que os tolos aprendam necessariamente um único aspecto normativo: o discipulado é supérfluo, pois nada se precisa aprender além dessa falsa premissa ensinada.  


Interessante que a doutrina do “não-senhorio” reconhece a parte mais fácil para o homem [a salvação, pela graça de Deus], mas sem as suas implicações diretas [a servidão, a sujeição ao Senhor; que resultará na morte do velho homem e no surgimento do novo homem]. Paulo diz que estamos mortos para o pecado, então como é possível ainda vivermos nele? [Rm 6.3]. "Assim também vós considerai-vos certamente mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor" [Rm 6.11]. Há um claro conflito de interesses entre o que dizem os proponentes do "movimento do não-senhorio" e o que a Bíblia nos revela. Ao ponto deles considerarem irrelevante o ato de se pecar ou não, pois já estão debaixo da graça, logo, quer pequem, quer não pequem, isso em nada afetará as suas condições de salvos. Para eles, qualquer alusão à Lei e à santidade não passa de legalismo, de hipocrisia, visto que ninguém consegue se ver livre totalmente do pecado. Ora, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. O fato do homem regenerado ainda pecar, não é o mesmo que pecar deliberadamente. Por deliberado quero dizer, convicto, decidido, disposto a levar às últimas consequências o ato  pecaminoso. O homem regenerado, ainda que conviva com os seus pecados, sente-os como um peso, um fardo duro de carregar; ele titubeia e oscila entre o fazer e o não fazer antes de fazer; feito, arrepende-se e é perdoado por Deus. Mas mesmo depois disso, ele ainda é capaz de experimentar uma  certa angústia, de se aborrecer, se entristecer, pois tem a nítida noção de que seu ato ofendeu a Deus. Como está escrito: "Porque a tristeza segundo Deus opera arrependimento para a salvação, da qual ninguém se arrepende; mas a tristeza do mundo opera a morte" [2Co 7.10].  Por isso, alguém que se considera salvo e nunca tenha se arrependido diante de Deus, somente receberá o salário do pecado: a morte! [Rm 6.23]. Porque é impossível ser salvo sem ser servo, ou de receber a redenção sem se sujeitar ao Redentor. O que eles querem é um reino sem súditos, e súditos sem reino.
[Continua]

NOTA: [1] Esta é uma perspectiva do ponto de vista temporal e humana, pois é certo que o perdão de Deus é eterno e imutável, assim como o próprio Deus é etrno e imutável; logo, muito antes de virmos a nos arrepender no tempo, ele já nos perdoou eternamente, pois a obra de Cristo na cruz foi decretada também na eternidade. Leia o texto "Santidade: Temporal ou Eterna?", onde desenvolve melhor este ponto. 
[2] Haraquiri - Técnica de suicídio praticada por membros da classe guerreira japonesa. A pessoa que comete haraquiri faz uma incisão em seu abdome, de determinada maneira prefixada, e estripa-se a si mesma. O termo japonês para designar esse ritual é Seppuku.
[3] Este texto é uma ampliação ao que foi publicado no blog "Cotidiano Cristão", cujo título é "Como ser 'salvo' e ainda ir para o Inferno!"
[4] Indico, como complemento, a leitura do texto "O que não é, pode não ser mesmo, se não for. Mas, e se for?",bem como a leitura do livro do pr. John MacArthur Jr. "O Evangelho dos Apóstolos", publicado pela Editora Fiel.