quarta-feira, 23 de maio de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 28: A bondade de Deus, e o mal



Por Jorge Fernandes Isah


INTRODUÇÃO
Bondade é a disposição natural para o bem, a qualidade do que é bom. E apenas Deus tem essa disposição em sua natureza, de forma que ele é completamente bom, de maneira que Deus não pode ser mau ou deixar de ser bom. Ele é bom, porque em seu ser não há qualquer maldade; o atributo da bondade não pode ser alterado, seja para mais ou para menos, porque Deus é a perfeita, infinita e imutável bondade, ela tem de existir em Deus sem limites ou medidas. Nele há simples, uniforme e infinitamente todo o bem. Como o salmista diz: "A bondade de Deus permanece continuamente" [Sl 52.1]; a terra está cheia da sua bondade [Sl 33.5]; e ainda: "Porque o Senhor é bom, e eterna a sua misericórdia; e sua verdade dura de geração em geração" [Sl 100.5]. 
A bondade inclui a benevolência, o amor, a misericórdia e a graça. Ela está presente na forma como Deus sustenta toda a criação, sejam anjos, homens, animais e a natureza. Todo o universo é a prova categórica da sua bondade para com as suas criaturas. E ela se manifesta na sua providência, em que todas as suas obras louva-lo-ão, "e teus santos te bendirão" [Sl 145.10]. Assim, o salmista diz que Deus, em sua bondade, dá o mantimento a todos no seu devido tempo, implicando no sustento e preservação. É por isso que o Senhor diz: "Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros, e vosso Pai celestial as alimenta... Olhai os lírios do campo, como eles crescem, não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles" [Mt 6.26, 27]. E até mesmo o ímpio não está isento de receber as bênçãos divinas, através da sua providência: "Porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" [Mt 5.45]. 
Deus é bom, e somente ele é. Foi o que o Senhor Jesus disse ao jovem: "Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus" [Mc 10.18]. Não há o que seja contestado nas palavras de Cristo. Apenas Deus é bom. Os homens, por mais que sejam considerados bons, por mais que pratiquem a bondade, ela nada mais é do que uma ínfima e quase indelével amostra da bondade divina. Se temos algo de bom em nós, ele provém de Deus, o qual somos a imagem e semelhança, que, por causa da Queda, tornou essa imagem em quase um espectro indistinguível e indefinível. O pecado nos arrasta para uma condição oposta à bondade; ele nos faz trilhar o caminho mal, que é a antítese do caminho de vida, o qual Deus nos deu a conhecer na pessoa do seu Filho Amado. O pecado nos faz transitar na morte, na dor, no sofrimento, da amargura, mas, sobretudo, no caminhos erráticos da rebeldia e descrença. Dizer que o sofrimento e dor não decorre do pecado é querer tampar o Sol com a peneira. Mesmo que não seja por conta de um pecado individual e específico, elas são originariamente causadas por nossa natureza pecaminosa, pela Queda, pela quebra da ordem. Por isso, nenhum homem pode ser chamado de bom; nem mesmo o mais abnegado e dedicado homem a buscar a bondade. Aquele jovem rico não considerou o que dizia. Não ao chamar Jesus de bom, porque ele é bom, sendo o Deus encarnado. Mas em pedir algo que era incapaz de realizar. Ao perguntar: "Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?", ele demonstrou uma preocupação com a possibilidade de, por si mesmo, alcançar a salvação, ao mesmo tempo em que demonstrava desconhecer os reais significados tanto da sua condição como pecador, como da salvação e da impossibilidade do homem obtê-la por esforço próprio. A sua pergunta nem mesmo fazia jus à pessoa do Senhor Jesus. O seu pensamento estava errado em quase tudo que se relacionasse com a sua inquirição.
A alegada não divindade de Cristo, cogitada por muitos, a partir deste relato, é uma avaliação frágil e descuidada de quem a proferi. Cristo não disse que não era Deus, mas que apenas Deus era bom. Ele sabia que aquele rapaz não consideraria as suas palavras, logo, as desobedeceria, revelando a descrença em sua própria afirmação: "Bom Mestre". O seu erro foi querer algo que era-lhe impossível alcançar. Há, também, um certo ar de orgulho e soberba na sua pergunta: "que farei para herdar a vida eterna?". Sabemos que o homem nada pode fazer para mudar a sua condição de perdição. Como o Senhor disse aos apóstolos, um pouco à frente, a salvação para os homens é impossível, mas não para Deus, pois para Deus tudo é possível [v.27]. Esse jovem considerou de maneira errada que era capaz de obter a vida eterna. Mas ela estava muito distante do seu alcance. Apenas Cristo, o Bom Mestre e Pastor, poderia fazê-lo por ele. 
E então, entra-se na questão da divindade de Cristo. Se Cristo não é Deus, como o homem pode ser salvo? A suposição é de que ele não se considera Deus ao afirmar que apenas Deus é bom. Mas é possível ler isso nas entrelinhas? Não. Essa é uma inferência completamente despropositada e equivocada. Pois, que diferença há entre o "Bom Mestre" proferido pelo rapaz, e a autoproclamação do Senhor em João 10.11? Ali ele chama a si mesmo de o "Bom Pastor". Com todas as letras ele diz: "Eu sou o bom Pastor" [numa referência clara ao Salmo 23, onde Deus é o "Bom Pastor"]. O que torna uma afirmação diferente da outra? Há diferença entre os dois "bons"? Não. Se Cristo é o bom Pastor, segue-se que ele é bom, por isso, Deus. Discutir a divindade de Cristo a partir da sua resposta ao jovem rico é impossível. Assim como é impossível questioná-la à luz da Escritura. O certo é que Deus é bom em sua unidade, mas na diversidade pessoal do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 

A BONDADE DE DEUS, E O MAL
A bondade está refletida na criação, a qual Deus considerou muito boa [Gn 1.31]. É claro que não podemos dar o sentido de "muito bom" à criação significando cada item dela como bom. O ato divino de criar e de fazer todas as coisas é que me parece "muito bom"; creio que ela está mais ligada ao fato de o Senhor ter se agradado por cumprir aquilo que imaginou e determinou criar. É possível mesmo divagar um pouco e acrescentar que, em vista do decreto eterno, a criação foi o cumprimento bom, correto, apropriado, daquilo que Deus estabelecera eternamente em seu plano. Creio não ser um disparate afirmar que a execução do plano divino na obra de criação é que ele considerou boa. Já que ele, como o Ser supremo e perfeito, não poderia jamais criar algo ruim em conformidade com o seu projeto perfeito. E isso não tem nada a ver com a perfeição da criação, a qual muitos teólogos se referem. Se Deus criasse algo perfeito, do ponto de vista metafísico, estaria se autocriando, o que é impossível; visto ser Deus eterno, não haveria como criar a perfeição. O que temos é a assertiva do Senhor em se agradar com a sua obra, de executá-la perfeitamente em conformidade com o seu decreto e vontade. E, certamente, como a Bíblia nos revela, os planos do Senhor incluíam tanto o mal como as coisas ruins, sem que elas procedessem dele, fossem causadas por ele. O mal é sempre causado pela deficiência do agente, de forma que os anjos ou os homens caídos realizam o mal por haver em suas naturezas uma deficiência que os inclina a praticá-los. E essa inclinação é decorrente da natureza pecaminosa, que contaminou a todos, sem exceção, a partir da queda de Adão no Éden. O mal, portanto, procede dessa deficiência natural do homem [que já estava presente em Adão, senão ele não pecaria], mas de forma alguma está presente em Deus, porque ele é o ser supremo, como Tomás de Aquino dizia: Deus é o Bem Supremo ou Sumo Bem, onde não há imperfeição ou falta alguma, pois ele é, também, a suprema perfeição. 
De certa forma, o mal metafísico está presente na criação. As imperfeições quanto aos seres pode-se ser percebida em relação a Deus, o ser perfeito. O homem, por exemplo, existe, vive, age e pensa. Uma pedra apenas existe, não vive, não age nem pensa. Nós, como seres criados à imagem e semelhança de Deus não atingimos a perfeição divina, o que é impossível, mas na escala da criação estamos mais próximos da sua perfeição; e, em relação às demais criaturas, somos mais perfeitos. Nesse sentido, tudo o que se aproxima mais do ser de Deus é "mais perfeito"; e também nesse sentido podemos dizer que Deus é o autor ou a causa do mal, mas do mal metafísico. 
Acontece que o mal moral é aquele que tem de ser punido. E, nesse sentido, apenas os anjos e homens podem cometê-lo. E o que seria o mal moral? Ao meu ver, e em concordância com o que diz Agostinho, é a ausência do bem. Temos de entender que o pecado, em si mesmo, exercer uma desordem na natureza humana, resultando na supressão de todo o bem, impelindo-o às escolhas opostas e conflitantes com os preceitos divinos; o que o torna incapaz, por sua deficiência moral, de orientar-se na realização do propósito final de Deus: fazer o bem, ser bom. E ele, em conformidade com a sua natureza, ausente do bem, dispõem-se a realizar o mal. 
Quando lemos Isaías 45.6-7, temos de entender que aquele mal ao qual o Senhor se refere não é outro senão a aplicação da sua Justiça, a sua ira, punindo o infrator pela transgressão, pelo pecado cometido contra o Deus santo e reto. Pois sendo Deus necessária e essencialmente bom, é impossível que ele faça o mal.
Alguns dirão que Deus não é bom porque há pessoas com fome, sede, sem vestimenta... crianças nascem mortas ou falecem prematuramente... e de que, em suma, há muita injustiça no mundo. Então, num mundo onde há dor, sofrimento, morte e injustiça, não é possível que ele seja governado por um Deus bom. Mas, pergunto, o que tem a ver as tragédias e dores do mundo com Deus? Não seria essa a culpa do próprio homem? Que ao se entregar ao pecado causou o caos e a degeneração na ordem de forma que houvesse a desordem? E essa desordem não trouxe somente a morte espiritual, mas a morte física, ou seja, a desordem que nos fez perder as qualidades da imortalidade, mas sobretudo, a boa disposição de todas as coisas, a harmonia em toda a criação, para sucumbir à confusão, o desalinho e a anormalidade? E não foram elas que culminaram nas doenças, limitações e fragilidade do corpo? Mas não somente do nosso corpo, mas de toda a estrutura do universo? Porque Deus é acusado do mal praticado por nós? Não é o que Paulo nos diz em Romanos 8.19-22, que a culpa do caos é do homem? De que toda a criação, sujeita à vaidade do homem, geme com dores de parto até agora, esperando que a criatura seja libertada da corrupção, "para a liberdade da glória dos filhos de Deus". Toda a criação espera a manifestação dos filhos de Deus, para se ver também livre da corrupção e da degeneração. Deus criou todas as coisas em ordem, o pecado levou-as à desordem, e ele está executando o seu plano para devolver novamente tudo à ordem. Por que então ele já não fez isso de uma vez?, pode dizer alguém. Ora, porque ele é Deus, e executará o seu plano segundo a sua vontade e no devido tempo estabelecido por ele. Nem antes, nem depois, mas no momento exato.
É claro que temos um aliado sinistro na obra de manter a desordem no cosmos: o diabo. Dizer que a sua participação não é efetiva no conjunto da obra que o homem realiza, e de que há uma conjunção de forças para perpetrar essa situação, ainda que o diabo nos veja como um inimigo desprezível e odioso, o seu próprio desejo de nos destruir e a toda obra divina, representa o caos do qual ele não consegue se livrar, sendo ele a causa da sua justa condenação e precipitação no inferno, criado para ele e seus anjos, e de onde jamais sairá depois do Juízo, onde estará em sofrimento eterno. 
Mais alguém pode se levantar e dizer que a própria ideia de "sofrimento eterno" imposto por Deus aos rebeldes é prova de que ele não é bom. Mas essa pessoa se engana quanto à natureza divina, que também é santa e justa. Um mundo onde não há a punição para o pecado, o delito e a rebelião, seria um mundo injusto, como o que vivemos. Porém, Deus não o criou assim. E, no seu decreto, caberá a ele estabelecer novamente a ordem, aplicando a sua santa justiça e ira sobre os irregenerados. Deus, em sua perfeição, não pode abrir mão da justiça em prol do infrator. Como Justo Juiz cabe aplicar a pena sobre ele. Ainda pode-se dizer que a justiça de Deus é má, pois inflige dor e sofrimento. Contudo, ele alertou o homem das consequências da sua desobediência: "Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás" [Gn 2.17]. E elas vieram como resultado da transgressão, do homem considerar imprudentemente que a sua vontade era superior à vontade de Deus, dele desconsiderar a verdade, e relativizá-la como algo possível de se fazer mantendo-se em seu estado original. Mas veio a queda, e com ela a desordem e a degeneração, e as consequências estão aí para todos vermos. Por mais que o homem descubra as curas para velhas doenças, muitas delas persistem matando [pois até mesmo o remédio não é eficiente para todos], enquanto novas surgem, manifestando que o homem é incapaz de trazer à ordem as coisas, antes ele é a causa, pelo seu pecado, do caos quase absoluto. Com isso temos que o homem não é bom em sua essência, ainda que ele reflita-a parcial e esporadicamente, como fruto do "Imago Dei", das frações da bondade divina que nos foi comunicada. 

Notas: 1- Textos bíblicos analisados em áudio: Mt 6.26-27 e Rm 8.18-23.
Aula realizada no Tabernáculo Batista Bíblico em 06.05.2012;
2- Baixe esta aula em file.MP3

terça-feira, 15 de maio de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 27: A justiça de Deus


Por Jorge Fernandes Isah



INTRODUÇÃO
Não se pode falar do atributo da justiça de Deus sem relacioná-lo com a sua santidade. Tenho que Deus somente pode ser justo por ser absolutamente santo; e a sua justiça é derivada da sua santidade, não como um atributo isolado e independente [apenas para efeito de comparação, visto os atributos divinos se comunicarem plenamente em seu ser], mas como uma necessidade inevitável da sua santidade. É como se a santidade necessitasse de um complemento a fim de ser distinguida, identificada; seria, guardadas as devidas proporções, as impressões digitais que identificam Deus como o ser santo. Ela se afigura como uma consequência natural do ser absolutamente santo de Deus, ou seja, ele tem de ser justo, pois, se assim não fosse, iria contra a sua santidade. A justiça comprova que Deus é santo, e a sua santidade confirma a sua justiça [Sl 145.17]. Sem a justiça, creio que a santidade estaria incompleta; mas isso valeria para qualquer atributo divino, os quais se interligam e se complementam perfeita e maravilhosamente. Com isso não estou dizendo que exista uma ordem de precedência entre elas, que tivessem surgido em momentos diversos, pois, como sabemos, Deus não está sujeito ao tempo visto ser eterno, e o eterno não tem o seu caráter moldado ou privado pelo tempo, estando além dele. Os efeitos temporais não têm nenhum poder sobre Deus, por isso que todos os seus atributos são igualmente eternos como o seu ser é eterno.


Contudo, pode-se dizer que a justiça divina se aplica no tempo; e ainda que ela sempre existisse, deu-se a conhecer a partir da Criação, mais especificamente quando Deus estabeleceu os preceitos pelos quais o homem deveria manter-se obediente e fiel à sua lei, sem a qual não conheceria a santidade nem a justiça divinas. O que reforça o ensino bíblico de que a Criação, antes de tudo, tem por objetivo exaltar e glorificar o Senhor, e é através dela que Deus pode ser conhecido em seu esplendor e perfeição intocáveis.


O que nos leva a reconhecer que qualquer "justiça" fora dos padrões estabelecidos por Deus como justos são injustos. E o que determinará o valor da justiça não pode ser outra coisa além do próprio Deus, visto ser ele santo e não haver nenhum padrão de santidade fora dele. Até mesmo a santidade dos seus filhos adotivos é fruto daquilo que Deus faz neles, e assim podemos dizer convictamente que somos santos porque ele nos fez santos; somos santos porque ele é santo; e, finalmente, somos santos porque ele quis que assim fôssemos para a sua glória. Sendo que muitas vezes o mundo reconhecerá a santidade divina através da nossa santidade, numa glória impossível ao homem se não fosse pela vontade e obra do Santo e Justo. A mais tênue demonstração de justiça dos homens nada mais é do que o reflexo da justiça divina, sem a qual não há a menor chance de existir.

Outro ponto é que não se pode falar em justiça alheio aos preceitos santos estabelecidos na Lei divina. Apenas o Justo poderia elaborar e determinar o que venha a ser justiça; e qualquer tentativa de estabelecê-la à margem da Lei somente implementará a injustiça. Tem-se que no mundo moderno e pós-moderno, dogmas e certezas dão lugar ao ceticismo e à dúvida, num reconhecimento evidente da impossibilidade humana de constituir adequada e ordeiramente um padrão apropriado para se instituir a justiça. Na verdade, extemporaneamente, o homem vive de guerrear contra ela, pelo próprio senso de injustiça que traz em si, decorrente da sua natureza pecaminosa. Como se provou em sua mente que é impossível organizar independentemente um sistema justo, após rejeitar o bom conselho divino, coube à humanidade caminhar célere em prol de um sistema onde a injustiça se normatizasse. E o ponto de partida foi o abandono da Lei, e, por Lei, refiro-me a todos os enunciados feitos por Deus em sua palavra que coíba o pecado e puna o pecador; pois nada há mais injusto do que eles. Quando se afirma que a justiça é algo inteiramente subjetivo e as medidas do justo seriam variáveis de grupo para grupo ou até mesmo de pessoa para pessoa, temos que a medida do justo, dada por Deus, tornou-se ilegítima, e o homem encontra-se perdido em meio ao delírio de uma verdade e realidade meramente particular a conflitar com outras verdades e realidades particulares, que se alteram até mesmo em um único indivíduo; de forma que o que lhe parece justo hoje pode não ser amanhã e nem ter sido ontem. Fazendo-o cada vez mais escravo da sua própria injustiça.

Se reconhecemos que Deus é santo e justo, tem-se que a sua Lei também é santa e justa. Se ele é eterno e a sua vontade é eterna, também a Lei, como parte da sua vontade, é eterna. O mesmo vale para a eleição e redenção dos salvos. Não há contingência em Deus, nem poderia haver, pois se houvesse, Deus não seria Deus. Portanto qualquer afirmação de que um único preceito divino possa não ser justo, torna o seu acusador no mais injusto de todos os homens, pois a justiça, assim como a santidade, é um atributo inerente à sua natureza, sem o qual ele não seria quem é. Assim diz o salmista: "Justo és, ó Senhor, e retos são os teus juízos" [Sl 119.137].



Por outro lado, dizer que a justiça é uma virtude humana [como pensam teólogos humanistas e liberais] é negá-la como virtude divina; é mentir duplamente e ser duplamente injusto. Ainda que o homem tenha "momentos" de justiça, ela provém do Senhor. Por isso é um dos seus atributos comunicáveis, mesmo que o homem o exerça parcial, imperfeita e temporariamente. 



O TRATO JUSTO DE DEUS COM OS HOMENS

Neste ponto, faz-se necessário afirmar o que seja justiça. No Direito, se utiliza a frase de Ulpiano, jurisconsulto romano, para defini-la: "Justiça é a constante e firme vontade de dar a cada um o que é seu" [1]. Parece-me vago e inconcludente essa definição, pois nem mesmo se sabe de quem deve ser a constante e firme vontade de dar, como definir o que é e o que não é do indivíduo. Podemos elencar muitas coisas como sendo o "seu", mas certamente essas coisas variarão tanto de pessoa para pessoa como de cultura para cultura e de tempos em tempos. Logo, é uma formulação subjetiva e inadequada, na incerteza de seu próprio conteúdo. Aristóteles diz que: "Uma vez que o transgressor da lei é injusto, enquanto é justo quem se conforma à lei, é evidente que tudo aquilo que se conforma a lei é de alguma forma justo". Os termos do filósofo grego parecem-me muito mais objetivos e mais próximos do conceito bíblico de justiça; a qual é, em suma, considerar justo quem está em conformidade com a lei, ou seja, aquele que é obediente e zela por ela; e também aplicar a lei quando alguém se rebela contra ela. Como a lei é a manifestação da vontade divina, todos os homens devem andar então em conformidade com a sua lei. 


Novamente frisarei que, para mim, a lei é todo o preceito que Deus estabeleceu e enunciou em sua santa palavra. Não apenas os mandamentos mosaicos na forma da letra, mas aquilo que ele inscreveu em nossos corações, a consciência do pecado que significa toda e qualquer atitude, pensamento ou desejo que vá contra a santidade divina. Paulo diz que "assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom" [Rm 7.12]. A lei é santa como reflexo da santidade divina, derivada dela, assim  também ela é justa, como o próprio Senhor é justo e diz a Israel:"E que nação há tão grande, que tenha estatutos e juízos tão justos como toda esta lei que hoje ponho perante vós?" [Dt 4.8]. Também é por ela que tomamos o conhecimento do pecado, e de que, ao cometê-lo, estamos em flagrante desobediência a Deus [Rm 3.20].

E é este ponto que nos interessa mais detidamente, a justiça relativa de Deus para com os homens. Por relativa não se quer dizer que é o oposto de absoluto, mas de exprimir uma relação na qual todos os homens se reportam a Deus como a autoridade suprema, e a quem todos estamos subordinados. Como diz o Dr. Heber Campos, "é a justiça que se manifesta no dar a cada um conforme os seus merecimentos" [2].

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário alertar que Deus é o Senhor de toda a criação, e de que ele exerce o seu governo sobre bons e maus, justo e injustos, e todos os homens estão debaixo de suas leis. Afirmar a injustiça de Deus em nada ajudará o infrator. Ele é a autoridade máxima, e acima dele não há qualquer outra. Nem mesmo a vontade do homem pode demovê-lo de exercer o seu domínio e poder soberanos. Deus é Deus e, por isso, é quem faz as regras, sempre segundo a sua vontade santa, perfeita e reta, em conformidade com o seu ser absoluto. Quer se queira ou não, quer se esperneie ou não, o homem deve satisfação a Deus, e ele será recompensado e cobrado no devido tempo segundo o que fez.

É notório ao cristão bíblico que todos os homens nascem em pecado, e suas obras são indignas, e jamais nenhum de nós poderá reivindicar justiça com base em seus próprios méritos diante de Deus, visto que as suas obras sempre o condenarão.

Esse ponto é importante pois a definição de justiça relativa [aqui, especificamente, tratamos da sua subdivisão, a justiça remunerativa, aquela através da qual Deus recompensa os seres racionais, homens e anjos, segundo o que fizeram de bom], pode levar ao engano de se imaginar que Deus absolverá alguém ou o considerará inocente por alguma coisa que ele faça, por uma justiça própria e meritória. Não. Por ser pecador e miserável, todos os homens, sem exceção, estão debaixo da Lei e pecaram e serão por ela julgados, de forma que todo mundo é condenável diante de Deus [Rm 3.23,19]. Por isso Deus, em sua graça, misericórdia e providência, determinou que o seu Filho Amado, Jesus Cristo, fosse dado em expiação por muitos, para que fossem justificados diante dele, como prova do seu amor [Rm 5.8]. Não há outro meio ou forma do homem não ser condenado. A única justiça que o Senhor reconhece é a realizada pelo seu filho, na cruz, para todos e sobre todos os que creem [Rm 3.22]. E assim, justificados pela fé no sangue do Senhor Jesus, temos paz com Deus, e somos poupados, somos salvos da sua ira [Rm 5.1, 9], e alcançamos a reconciliação [Rm 5.11].



Temos que Deus somente justifica e absolve o homem através da morte de seu Filho e apenas por ela. Sendo a prova da sua graça e bondade para com  aqueles que ele amou eternamente, e pelos quais fez manifestar a sua infinita e gloriosa justiça, estando livres do juízo de morte e justificados para a vida. Pela obediência de um único homem à Lei de Deus, aqueles que também foram amados eternamente serão feitos justos [Rm 5.19]. Mas nada disso, como se vê, pode ser creditado ao homem, nem mesmo os atos bons que ele pratica, nem as boas ofertas que dá. Davi compreendeu como ninguém o que ele e o seu povo eram, e como careciam da bondade e providência divina para fazerem o que era bom aos seus olhos, e de que nem ele ou algum dos seus súditos tinham do que se orgulhar diante de Deus, visto que tudo que lhes era dado retribuir, era fruto daquilo que o próprio Deus dava-lhes: "Porque quem sou eu, e quem é o meu povo, para que pudéssemos oferecer voluntariamente coisas semelhantes? Porque tudo vem de ti, e do que é teu to damos. Porque somos estrangeiros diante de ti, e peregrinos como todos os nossos pais; como a sombra são os nossos dias sobre a terra, e sem ti não há esperança. Senhor, nosso Deus, toda esta abundância, que preparamos, para te edificar uma casa ao teu santo nome, vem da tua mão, e é toda tua" [1Cr 29.14-16].

Apenas pela sua vontade, e como cumpridor das suas promessas, Deus se faz devedor ao homem; não porque recebeu algo de nós, mas porque ele prometeu que nos daria segundo as condições que ele estabeleceu, e que realizou por nós. Temos a impressão de que cumprimos a sua vontade voluntariamente, como se não houvesse em nós nenhuma outra motivação além do desejo de servi-lo e honrá-lo, mas como seríamos capazes de dar algo a Deus que ele primeiro não nos desse? De certa forma, é engraçado que além de recebermos o suficiente para dar a ele, ainda seremos recompensados por isso, sendo que não há mérito algum em nós, e nem mesmo somos dignos de alguma honra. O que se revela é uma grande oportunidade para bendizê-lo, louvá-lo e glorificá-lo por tão grande graça e misericórdia e bondade para conosco, servos inúteis, que fazemos apenas o que devemos fazer e que nos foi ordenado realizar [Lc 17.10].

Mas, e o que acontecerá aos que não foram justificados por Cristo e por ele não foram salvos?



A IRA DE DEUS

A ira divina é a justa e perfeita manifestação de Deus diante do pecado. É a sua resposta necessária ao pecado, sem a qual a sua santidade e perfeição ficariam comprometidas. Veja bem, se Deus não se irasse e revelasse indiferença ao pecado, não seria Deus; ele não pode pactuar com a injustiça, sendo o Justo. A ira é uma das condições essenciais do seu ser e, portanto, é também uma perfeição divina, através da qual ele infligirá castigo aos que violarem a sua palavra e vontade. Para eles, não há misericórdia; ele não pode deixar de puni-los, de lançar sobre eles a sua severidade, tal qual o profeta diz: "O Senhor é Deus zeloso e vingador; o Senhor é vingador e cheio de furor; o Senhor toma vingança contra os seus adversários, e guarda a ira contra os seus inimigos." [Na 1.2]. Com isso, estou a dizer que o caráter divino, o seu ser perfeito, não o seria se em Deus a ira não se manifestasse. Ela é a resposta divina ao fato dele ser santo e justo.
  

O primeiro ponto é que a ira de Deus se manifesta sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, "que detém a verdade em injustiça" [Rm 1.18]. Acontece que a ira e o castigo divinos não fazem parte da pregação atual. Por uma visão distorcida de que os homens são bons em sua natureza e essência, muitos consideram falsos os versos bíblicos que exortam o homem a não se rebelar contra Deus, antes deve obedecê-lo, pois do contrário, a ira do Senhor estará sobre ele. Há um falso evangelho sendo pregado, e que tem levado muitos a manterem-se na impiedade, batendo às portas do inferno. Não é preciso que se cometa algum crime atroz para fazer parte desse grupo. O simples fato de não se sujeitar a um mínimo preceito divino, podendo ser, até mesmo, a mera rejeição da sua justiça, implicará na impiedade e injustiça. Deus tem de ser glorificado pelo que ele é, o Senhor de tudo e todos, a autoridade absoluta e perfeita em todos os seus atributos.

É interessante que as criaturas cada vez mais se consideram aptas a fazerem de Deus réu. Acreditam que estão num patamar tão superior que podem tecer críticas, zombar e escarnecer daquilo que nos foi revelado em sabedoria e retidão. Há um desejo crescente de se criminalizar a Deus, fazendo da sua palavra um simples livro de códigos imorais e desumanos. Mas, ó homem, quem és tu que replicas a Deus?, já dizia Paulo. Quem o fez senhor e juiz? Quem investiu-lhe da autoridade que julga ter? Novamente, temos o pecado se manifestando na mente e lábios dos que  se consideram, em sua vaidade e soberba, superiores a Deus. Podem não concordar abertamente com esse rótulo, mas o desejo latente de independência os faz amotinados e rebeldes. Essa tentativa de independência sempre significará a incompatibilidade com o que é santo e justo e a compatibilidade com o pecado e a injustiça, em que ambos se toleram mutuamente, e seus desejos se combinam e permanecem conciliados.

A ira divina é algo presente na Escritura, e o próprio Deus não se envergonha de proclamá-la [Dt 32.39-43; Ex 22.22-24; Rm 1.18]. Por que então temos brios em anunciá-la, ao mesmo tempo em que contemporizamos com o pecado? Penso que a ira divina e a certeza do seu juízo estão presentes em nossa consciência, como algo que Deus nos legou. Sabemos que ela é justa, mas a nossa natureza não se conforma a ela, por isso tenta negá-la ou ocultá-la a fim de não haver barreiras ao pecado, deixando-o agir livremente, sem restrições, e não sermos acossados pela ideia de uma merecida punição. O engano nos faz acreditar que Deus, em algum momento, se arrependerá daquilo que prometeu, e não cumprirá a sua palavra: de que todo o pecado será castigado e os pecadores sofrerão na carne pelo mal que praticaram. Deus é fiel em tudo o que promete, e não abrirá exceção para o derramar a sua ira. É o que o apóstolos diz: "Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu povo. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" [Hb 10.30-31].

Contudo, os cristãos podem irar-se?

Há uma ideia de que o crente deve ser "paz e amor". Este lema foi muito utilizado pela contra-cultura nos anos 1960, a era "hippie", em que as pessoas se preocupavam exclusivamente consigo mesmas, com o seu prazer, e em negar toda a cultura ocidental judaico-cristã. O pecado não era o cometido individualmente por cada um deles, seja no uso de drogas, no sexo livre, na ociosidade, na idolatria e culto a deuses pagãos, mas na sociedade e na igreja como mantenedores de uma ordem cristã hipócrita, em que se defendia a moral e a ética e se condenava o pecado, mas que não passava de um discurso, enquanto a maioria se entregava mesmo aos desejos da carne. Eles pensavam que escancarando ao mundo a sua própria impiedade, este mundo deixaria cair a máscara e se mostraria como realmente era. Ao invés de se empenharem na construção de um ideal verdadeiramente justo, tomaram o caminho oposto, como se colocar o dedo na ferida pudesse curá-la. Certamente não havia o menor interesse em cura, mas o empenho de se esfregar limão e pimenta na chaga. Não passando de outra justificativa para o pecar livremente e sem culpas. Em outras palavras, eles se especializaram em agir exatamente naquilo em que condenavam, a hipocrisia, pois com a desculpa de se "desnudarem" apenas serviam ao propósito dissimulado de se apegarem mais e mais ao próprio pecado.

Então é que entra a questão da ira, a qual é demonizada pela maioria dos cristãos. Quando muito, consideram-na uma prerrogativa apenas de Deus, estando vedado aos homens. Mas, é realmente isso? Paulo nos exorta a irar e não pecar [Ef. 4.26], indicando que não é todo o tipo de ira que se transforma em pecado. Um exemplo de ira santa nos foi dado pelo Senhor Jesus ao expulsar os cambistas e vendilhões do templo [Jo 2.13-17]. Mas, e para nós, quando é justo irar-se e não? Penso que há uma linha tênue que delimita a ira santa e a ira pecaminosa. Como estamos mais sujeitos a adentrar do outro lado da linha, não é prudente o estímulo ao irar-se. Facilmente nos iramos quando vemos uma injustiça. Quando vemos o pecado campear livremente. Quando a palavra de Deus é desprezada. Quando Deus é escarnecido e insultado pelos tolos. A Bíblia diz que todos eles, se não se arrependerem dos seus pecados, serão condenados e afligidos eternamente pela ira divina. E podemos deixar a vingança para o Senhor, como ele mesmo nos orienta, a descansar e confiar nele. Mas normalmente não nos iramos quando somos nós a cometer o pecado e a injustiça, antes nos tornamos condizentes com o nosso erro, com o de familiares e amigos. Contemporizamos, nos fazemos de vítimas, e encontramos as explicações mais espúrias para justificar o injustificável, e nos enganos em nosso próprio senso de [in]justiça. Ao invés de nos irar contra o próximo, contra o pecado alheio, por que não experimentamos primeiramente irar-nos contra o nosso próprio pecado e contra nós?

Entendo que o "irar-se" é menos uma ordem e mais uma concessão divina, enquanto o "não pequeis" é um imperativo. Na maioria das vezes, os motivos da nossa ira são ofensas e injustiças cometidas contra nós mesmos. Há uma nítida intenção de retribuir a afronta, de restaurar a honra. E não há como proceder assim sem ser levado a pecar, basta lembrarmo-nos das reações, imprecações e insultos que realizamos em nome de uma pretensa justiça. Pois nos ressentimos facilmente diante de uma provocação.

Portanto, entendo que o cristão não pode ser "paz e amor" em relação ao pecado, especialmente ao pecado pessoal, às tentações que se nos apresentam diariamente e que consentimos em presenciá-las, consumando o pecado. Essa é a nossa guerra, a nossa luta diuturna, na qual não podemos dar trégua, antes irar-nos e atacá-la francamente, pois ela é ofensa à santidade de Deus. Devemos deixar a justiça para o Senhor, e aqueles que ele estabeleceu como seus ministros, as autoridades que são seus instrumentos para castigar o que faz o mal [Rm 13.4].

Iremos pois, e não pequemos; é a ordem do Senhor.

Nota: 1- Em conversa com o pr. Luiz Carlos Tibúrcio, ele entendeu que Cristo, de certa forma, validou essa frase de Ulpiano, ao dizer aos fariseus: "Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus", de forma que, ao se fazer isso, aplica-se a máxima de justiça do jurisconsulto romano.
2- "O Ser de Deus e seus atributos", Dr. Heber Carlos de Campos, pg 341, Editora Cultura Cristã;
3- Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico em 29.04.2012;
4- Textos analisados durante a exposição da aula em áudio: Gênesis 6 e 7 e 1Crônicas 29: 14-16;
5 - A foto ao alto, remetendo-nos à crucificação do Senhor, e vem de encontro à afirmação do apóstolo Paulo de que Cristo "para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" [1Co 1.30]; 
6- Baixe esta aula em file.MP3

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 26: A santidade de Deus



Por Jorge Fernandes Isah


INTRODUÇÃO
Muito mais do que ser interpretada como apenas uma qualidade moral ou ética de Deus, a sua santidade é outro atributo que o caracteriza como Deus. Sem ela, ele não seria o que é, pois, assim como o Pai é santo [Is 57.15, 1Pe 1.15-16], Cristo também é o Santo e Justo [Is 41.14, At 3.14], e Deus Espírito é chamado de o Espírito Santo de Deus [Ef 4.30]. Temos que a santidade é um atributo sem o qual Deus não seria Deus, e que também é compartilhado necessária e essencialmente pelas pessoas da Triunidade; de forma que é considerado o mais nobre, enfático e exaltado atributo, revelando a majestade e distinção da sua natureza e caráter. É-se necessário dizer que esta distinção tem uma conotação muito mais pedagógica, tanto na Bíblia como na Teologia Cristã, pois sabemos que em Deus não há distinção entre os seus atributos; mas conhecendo-nos como ele nos conhece, foi assim que se revelou, para que pudêssemos conhecê-lo mais adequadamente, e pelo qual ele seria mais excelentemente glorificado. Também, porque, certamente, esse é o atributo que mais nos aproxima do ser divino, e a sua ausência nos afasta; para que pudêssemos dar, ainda que não absolutamente, a devida relevância à santidade, e reconhecer a necessidade de tê-la para que fôssemos novamente ligados a Deus, pela obra sacrificial e redentora de Cristo. Ao mesmo tempo em que ele se revela como é, e quem é, ordena-nos a ser como ele: santo! Como o Senhor disse a Israel: "E ser-me-eis santos, porque eu, o Senhor, sou santo, e vos separei dos povos, para serdes meus" [Lv 20.26]; no que foi repetido pelo apóstolo: "Porquanto está escrito: Sede santos, porque eu sou santo" [1Pe 1.16].

A santidade, como atributo divino comunicável aos homens, em face da nossa natureza pecaminosa, é um processo laborado pelo Espírito Santo, não podendo, jamais, ser considerada em seu caráter absoluto. Para que o homem se aproxime de Deus é necessário que não haja mancha ou pecado, o que nunca acontecerá por nossos esforços. Ainda que desejamos a santidade, busquemo-la, e sintamos os seus efeitos na alegria de resistir ao pecado e ter comunhão com Deus, estamos constantemente suscetíveis a cair em afronta contra ele. É um sobe e desce em nossas vidas, e como as decidas são mais fáceis, e as subidas requerem esforço, temos sempre a impressão de que nunca chegaremos ao topo. Mas o fato é que estamos lá, e essa é uma gloriosa vitória, ainda que não tenhamos mérito algum nela; pois ela é completamente realizada por Deus, e somente possível pela obra redentora do nosso Senhor Jesus Cristo na cruz. 

Com isso, estou a dizer que uma santidade "relativa", em que ora estamos no estado de santidade [e esse estado de santidade é discutível, pois em nossa imperfeição, muitas vezes estamos diante do pecado sem reconhecê-lo; e pecamos sem a noção do pecado], ora estamos no estado de impiedade, não é capaz de nos aproximar de Deus, muito menos de nos relacionarmos com ele. Até mesmo o arrependimento seria impossível, se Cristo não nos intermediasse e intercedesse. Acontece que a intermediação e intercessão de Cristo por nós é eterna, portanto a sua interposição entre Deus e nós é absoluta, e somente por ela é possível que nos relacionemos e nos acheguemos a Deus. Do ponto de vista divino, sempre fomos e seremos absolutamente santos, pois a obra redentora do seu Filho Amado, ainda que realizada no tempo, tem o seu caráter imutável e eterno; e o seu cumprimento absoluto resultou no perdão irrevogável, e na comunhão ininterrupta que temos com o Criador. Mas por conta do pecado, ela nos parecerá temporariamente cortada, como se estivesse desligada, e somente retomará o seu curso após o arrependimento para o perdão. Na perspectiva humana, a nossa santidade estará sempre condicionada a ele, posto sermos pecadores miseráveis, necessitados do favor divino: a sua graça infinita e eterna. Para Deus, como o salmista disse, fomos feitos eternamente mais brancos do que a neve, pois lavados e purificados pelo sangue do Cordeiro [Sl 51.7]. É o que Paulo afirma, ao falar da nossa predestinação e adoção por Jesus Cristo, pelo qual somos agradáveis a Deus, santos e irrepreensíveis, eleitos antes da fundação do mundo, segundo o beneplácito da vontade divina [Ef 1.4-6]. 

Com isso quero dizer que não é necessário fazer nada em favor da nossa santidade? Claro que não! O apóstolo nos adverte: "Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" [Hb 12.14]. A ordem é para que sejamos santos, não a negligenciando, antes batalhando por ela. De uma forma misteriosa, Deus opera em nós tanto o querer como o efetuar, mas nós temos de querer e fazer, e seguir querendo e fazendo, e assim sentindo, cada vez mais, que somos transformados de glória em glória na sua imagem, refletindo como um espelho a glória do Senhor [2Co 3.18]; que somente acontecerá quando ocupar-nos em conhecer e entender o Deus santo, levando-nos a reconhecer a nossa miséria e imundície, e a ansiar chegar à perfeição do Santo.

A TEOLOGIA DO PECADO
Infelizmente, o mundo nunca deu valor à santidade, e para escândalo do nome de Cristo, muitos dos que se dizem seus discípulos também desprezam-na, apelando para uma "graça barata", em que o pecado, seja qual for o seu grau de malignidade, apenas acentuará a obra redentora. De forma que, ao ver deles, deve-se realizar um esforço sobre-humano para se pecar mais e mais, buscando-se uma overdose de iniquidade, e assim Cristo será exaltado e sua graça louvada pelo muito pecado cometido. Essa distorção apenas revela que tais proponentes da "teologia do pecado" não passam de inimigos da cruz, zombadores, querendo justificar sua rebeldia e transgressão com o mais absurdo dos argumentos, como se o Evangelho fosse bom apenas para nos adequarmos à nossa vida, e não o suficiente para transformá-la, e nos tornar em novas criaturas, que tenham a mente de Cristo. 

Torna-se urgente a retomada da sã doutrina e volta ao Evangelho, para que o homem seja livre das amarras do pecado; e Deus glorificado por sermos seus imitadores. 

A SANTIDADE, LEI E OBEDIÊNCIA 
No mundo de hoje disseminou-se a ideia de que qualquer coisa pode agradar a Deus. Desde que o homem a realize sinceramente [e veremos que muitos erros são cometidos sinceramente e por convicção; e de que, mesmo o pecado também é cometido sincera e convictamente], não importa o quão distante ele esteja dos preceitos divinos, Deus se agradará não pela obediência, mas pelo desejo do homem em agradá-lo. Essa perversão tem o objetivo de "liberar" o homem da submissão e da necessidade de se cumprir a vontade divina, dando vazão à sua independência de Deus que, em sua condição menos danosa [se é que se pode chamá-la assim], permite ao homem conduzir o seu culto a Deus ao invés de ser conduzido por Deus a cultuá-lo corretamente. O que se vê hoje são formas de adoração alheias e em oposição ao ensino bíblico, onde Deus não é glorificado mas o homem, que pode se expressar e extravasar-se livremente num culto cujo padrão é a autoadoração. 

Por isso, Deus nos deu exemplos de que a adoração verdadeiramente santa é a realizada em espírito e em verdade [Jo 4.23-24]. Veja que não se adora apenas em espírito, mas também em verdade. Há uma ênfase muito grande na adoração como manifestação subjetiva do homem, em que as suas sensações terão um lugar primordial. Arrepios, êxtase, catarse, emoções extravagantes são sinônimos de adoração. Não importam os motivos que levaram a isso. Nem que o resultado seja apenas uma "evacuação" da alma, como tirar um "peso" interior. Mas Cristo nos diz que espírito e verdade são fundamentais para a adoração. Um não subsiste sem o outro; de maneira que a adoração morre no altar de Deus se não atuar o Espírito, o qual é a verdade, e o espírito do homem está morto sem ela, pois a verdade é o próprio Deus. 

A fim de que o homem soubesse qual o padrão moral e ético divinos, Deus nos deu a sua lei. Especificamente ela foi dada à nação de Israel, o povo separado por Deus para ser seu, em meio ao mundo pagão e idólatra da época. Ali temos preceitos e normas que distinguiriam os judeus dos demais povos, revelando que eles adoravam ao Deus vivo e verdadeiro, e não aos falsos deuses. Todo aquele código tinha por objetivo revelar que ali encontrava-se um povo separado para e ao serviço do Senhor. E que era exortado continuamente a ser santo como Deus era santo; a afastar-se de toda a iniquidade. No sentido moral, significava que Israel deveria manter-se distante, afastado de toda a prática que infringisse os preceitos divinos, de todo o pecado, o qual era, e ainda é, abominação a Deus. Quem desobedecesse estaria sujeito às sanções e punições que o infrator sofreria. Deus se revelava misericordioso e gracioso ao escolher um povo, mas esse povo deveria ser santo, do contrário, a ira e a justiça santas de Deus estaria sobre ele. Na lei estava revelada, ainda que resumidamente, qual era o padrão da santidade divina, e o que os homens deveriam fazer para imitá-lo. É sabido que, em nossa imperfeição e mutabilidade, é impossível cumpri-lo. Coube a Cristo fazê-lo por nós, o justo morrendo pelos injustos, para conduzir-nos a Deus [1Pe 3.18]. 

Vejamos o caso de Uzá [2Sm 6.1-11]. A arca da aliança havia sido tomada pelos filisteus como humilhação máxima, após derrotá-los e matar mais de 30 mil judeus. Então Davi, após derrotar os filisteus, buscou a arca da aliança a fim de levá-la para a sua cidade [1]. A arca foi colocada num carro puxado por uma junta de bois, o que era proibido pela lei, já que a arca só poderia ser transportada pelos levitas que a conduziriam por varais de acácia revestidos por ouro e enfiados nas quatro argolas de ouro colocadas nos seus lados [Ex 25.10-16]. Aqui temos o primeiro erro, ou desobediência. Então, quando os bois tropeçaram, a arca pendeu, como se fosse cair, e Uzá tocou-a, tentando evitar que fosse ao chão. Naquele mesmo instante, a ira de Deus se acendeu contra Uzá, "e Deus o feriu ali por sua imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus" [v. 7]. Sempre que lia essa passagem me vinha à mente que Deus não deveria ter agido assim. Afinal Uzá teve boas intenções; não querendo que a arca caísse. Porém, quando começa-se a compreender o real significado do que vem a ser a santidade divina, compreendemos que qualquer desobediência é um ataque direto a Deus. Por menor que seja, por mais irrelevante que pareça, Deus, em sua santidade, não pode ser ofendido, nem mesmo através dos objetos que ele estabeleceu como símbolos da sua presença. De nada adiantaram as boas intenções de Uzá, ele havia desobedecido um preceito divino e, mais do que isso, ele foi imprudente; faltou-lhe tino, juízo, cautela, saber avaliar corretamente a situação a fim de não infringir a lei. Em suma, Uzá foi descuidado, relapso, desobediente, ainda que estivesse imbuído do melhor dos propósitos. Acontece que essa "boa-fé" somente pode ser percebida pelos nossos olhos frágeis e enganosos. Aos olhos de Deus, ele cometeu irreverência, violando a sua santa lei [Rm 7.12]. 

Nos dias de hoje, onde praticamente tudo é considerado "agradável" a Deus, o exemplo de Uzá é um alerta para que não se negligencie a obediência; sabendo que a lei de Deus é eterna e o padrão através do qual Deus estabeleceu como poderíamos imitá-lo, e assim, pelo poder do Espírito, sermos transformados dia após dia na imagem do seu Filho Amado. 

Resumindo, quero dizer que a obediência é o sinal de santidade. Não que sejamos sempre obedientes, porém, quanto mais nos aproximarmos da obediência de Cristo, mais glorificaremos a Deus no processo de nos tornarmos como ele; uma obra que culminará com a nossa transformação na imagem e semelhança do nosso Senhor. Ainda que não compreendamos certas ordens, como soldados é-nos exigido cumpri-las. A parábola dos dois filhos [Mt 21.28-32], parece-me elucidativa do que digo. Como também já falei, o arrependimento nos leva à santidade através do perdão, com o qual temos comunhão com Deus, mas o arrependimento também nos leva à obediência [v. 29]. Mas tanto o arrependimento como a obediência são reflexos da santidade, de forma que há uma relação intrínseca entre eles de precedência e consequência; atrelados de maneira que torna-se difícil distinguir o que é causa do que é resultado. O fato é que santidade, arrependimento e obediência são indissociáveis; e Deus nos exorta a tê-los como prova do caráter de Cristo formando-se em nós. 

A SANTIDADE DE DEUS 
Deus é santo. Mas o que significa ser santo? A palavra hebraica que define o "ser santo" é "qadash", derivada da raiz "qad", denotando separar ou cortar. Logo, santo, quer dizer aquele que é separado ou foi cortado de algum lugar. A santidade humana refere-se ao homem que foi "separado" para Deus, e, também, de que ele foi separado do pecado; uma coisa implicando na outra. Parece contraditório que sejamos chamados de santos por Deus, e vivamos uma vida no pecado [ainda que não integralmente ou mesmo eventualmente]. Como sempre, há de se distinguir o que é eterno e imutável do que é temporal e mutável; do ser perfeito e infinito de Deus e da nossa imperfeição e finitude. Certo é que Deus separou para si um povo santo, que para ele já é e sempre foi santo, porque a sua vontade assim determinou. 

A nossa santidade é derivada e adquirida de Deus, e é ele mesmo que a opera em nós, de forma que a boa obra iniciada se aperfeiçoará até o dia do nosso Senhor Jesus Cristo [Fp 1.6]. O alvo da vida cristã é a santidade, certamente o atributo mais importante, e que nos liga maravilhosamente a Deus. 

Interessante que a Bíblia relata uma série de objetos que eram considerados santos, posto que separados, quer dizer, tirados do seu uso comum como objetivo exclusivo de serem utilizados no serviço de Deus. Temos que as vestes dos sacerdotes eram santas [Ex 28.2]; o lugar do sacrifício era santo [Ex 29.31], os vasos utilizados no templo eram santos [ 1Rs 8.4], e aí por diante. Nesse sentido, tudo o que é separado por e para Deus é santo. Acontece que todas as coisas santas, mesmo o homem, não o são por suas naturezas, mas porque a vontade soberana de Deus estabeleceu que assim seriam. É a sua vontade santa que definirá o que é e o que não é santo, sem que nenhum outro padrão possa ser usado para estabelecer o critério de santidade. E isso somente é possível porque Deus é santo, em seu ser, sua natureza nos revela que ele é absolutamente distinto de toda a Criação. Todos os seus predicados denotam a sua santidade, revelando-nos a singularidade do seu ser, e forma como ele transcende todas as criaturas, não se confundindo com nenhuma delas, estando acima delas, sendo exaltado e glorificado como Senhor supremo, majestoso e excelso, ao qual todos devem exaltar, glorificar e honrar. Deus portanto é santo em sua unidade, na relação entre as três pessoas, e pelo fato de que tudo o mais foi criado pela sua vontade e poder, estando sujeito a ele. Nesse sentido, nenhum de nós pode ser santo, pois apenas Deus é. 

Pode-se falar também de um aspecto específico da santidade divina, o caráter ético e moral que nos é revelado pela Escritura. Nesse sentido derivado, temos que Deus é santo porque estabeleceu leis santas para as suas criaturas, segundo a sua própria santidade. A Lei de Deus é santa porque ele é santo, e por ser santo, tudo o que ele faz e ordena também é. De forma que Deus também está separado de todo o pecado, e na plenitude do seu ser absolutamente santo não pode ter comunhão com ele [o que se pode chamar de santidade negativa], porque ele é a perfeição e a pureza majestosa ética [sentido positivo]. Como Berkhof define, a santidade ética de Deus é virtude da qual ele eternamente quer manter e mantém a sua excelência moral, aborrece o pecado, e exige pureza moral em suas criaturas" [2]

Deus é luz, e dissipa todas as trevas, para que, como os serafins [3], com o rosto e os pés cobertos clamemos: "Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória" [Is 6.3]. 

Notas: [1] A Cidade de Davi é considerada a parte mais antiga de Jerusalém. Ela está situada sobre uma formação montanhosa na parte sudeste à atual cidade velha de Jerusalém nos dias de hoje;
[2] Teologia Sistemática, Editora Cultura Cristã, pg. 67;
[3] Interessante que os anjos eleitos, mais do que os homens eleitos, se escondem envergonhados diante do trono de Deus, cobrindo rosto e pés em sinal de submissão e reverência. E eles não são pecadores, mas puros como Deus os concebeu. Por que é tão difícil para nós, miseráveis e homens de lábios impuros e que habita no meio de um povo de lábios impuros, como diz o profeta, não nos sentimos envergonhados diante daquele que tudo vê? E reconheçamos a nossa pequenez e insignificância diante do esplendor da santidade de Deus?
[4] Textos analisados durante a aula em áudio: 2 Samuel 6.1-11 e Isaías 6.1-7;
[5] Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico em 22.04.2012;
[6] Baixe o áudio desta aula em file.MP3