Por Jorge Fernandes Isah
A primeira coisa a dizer é que cremos no poder de Deus de curar, ao contrário do que alguns afirmam. Contudo não cremos mais que Deus o faça pelas mãos de homens ou mesmo pelos objetos que eles usavam. A Bíblia nos informa que a sombra de Pedro curava as pessoas [At 5.12-16]. Ele não orava nem as tocava, mas apenas o passar da sombra pelos enfermos curava-os. Igualmente as roupas de Paulo eram instrumentos de Deus para a cura dos doentes [At 19.11-12]. Mas isso poderia acontecer hoje? Podemos afirmar que não, porque essas maravilhas eram realizadas pelos apóstolos como confirmação de que a mensagem de boas-novas, o Evangelho de Cristo, provinha de Deus. E somente os apóstolos podiam transferir esses dons a outros irmãos da igreja, como já vimos em outra aula. Ninguém mais! Portanto, com o fim da era apostólica, esses dons cessaram, pois já não podiam mais serem transmitidos; não havendo nenhuma outra forma de sucessão apostólica além da autoridade que os próprios apóstolos possuíam. O dom de transmitir tal poder pertencia a eles, e somente a eles.
Então, é preciso entender que o dom de cura tinha um caráter revelacional e estava diretamente ligado à testificar e ministrar o Evangelho de Cristo. Não tinha por objetivo apenas curar o enfermo, como vemos hoje nas "campanhas de cura", onde o Evangelho não é pregado, Cristo não é pregado, não há arrependimento, conversão, mas apenas uma proposta de cura do corpo enquanto a alma está moribunda e o espírito agonizante. Nada disso tem a ver com o dom dado à igreja primitiva. A cura, assim como os milagres, tinham o propósito de revelar Cristo e sua obra através da pregação do Evangelho, e de que ele provinha de Deus; igualmente testificava que os apóstolos e discípulos não proclamavam nenhuma mensagem meramente humana, mas eram porta-vozes do próprio Deus. Não pensem também que a igreja era um pronto-atendimento, como muitas igrejas defendem e tentam copiar, porém copiam um padrão que não é eclesiástico nem neotestamentário. A cura servia a uma finalidade, como já dissemos, e nem todos eram curados, e muitos não foram, como a própria escritura informa, porque era específico, restrito a certas situações. Os dons não eram como varinhas-de-condão, bastando acioná-las que automaticamente entrariam em ação e proporcionariam os efeitos desejados. Como exemplo, há o caso de Epafrodito, o qual é citado por Paulo como alguém que quase morreu, pois estava muito doente. A ordem sequencial, em Filipenses 2:25-27, é: esteve muito doente, e quase morreu, indicando que o seu estado de saúde agravou-se no decorrer da enfermidade. Deus o curou, e o apóstolos se alegrou de Deus tê-lo feito, mas não há nenhuma indicação de que foi por intermédio do apóstolo que o Senhor o fez. Ao ponto de Paulo dizer que Deus teve misericórdia do seu companheiro de lutas e cooperador mas também de si mesmo, poupando-o de sofrer tristeza sobre tristeza, com a possibilidade da morte do amigo e irmão. Se Paulo dispunha do dom no momento e hora em que quisesse usá-lo, por que não o fez? Ou não dependia simplesmente dele acioná-lo? Era necessário cumprir um propósito previamente estabelecido e comunicado por Deus? O que nos mostra que os apóstolos não eram super-homens, nem homens independentes, mas homens comuns poderosamente usado pelo Senhor, sujeitando-se à sua vontade e dependentes dela.
Fica claro que Paulo, se ainda tivesse esse dom ou pudesse usá-lo a seu bel-prazer, não se furtaria a curar Epafrodito, um colaborador tão amado. Logo o dom de cura não era algo automático e infalível, e que se podia dispor dele quando bem o quisesse. Ele também diz que deixou Trófimo doente em Mileto, ao despedir-se de Timóteo [2Tm 4.20], e sugeriu ao próprio Timóteo que tomasse um pouco de vinho por conta das frequentes dores no estômago e outras enfermidades [1Tm 5.23].
O próprio fato de Paulo referir-se a um "espinho na carne", que bem podia ser uma doença usada por satanás para esbofeteá-lo [2Co 12.5-10], e ainda de um certo problema de visão que o acometeu durante bastante tempo, quando primeiro anunciou o evangelho aos gálatas, estando em fraqueza da carne [Gl 4.12-15], corrobora o fato de que ele não podia curar-se a si mesmo, utilizando-se do dom de cura em benefício próprio. Isso pode deixar muitos crentes atônitos: mas, para que o dom de cura se não posso curar a mim mesmo? E eu diria que, mais do que satisfazer aos nossos desejos pessoais Deus tem um plano maior, que é a sua glória, e, muitas vezes, não está nesse plano que um crente seja curado, que não sofra um acidente, que não seja perseguido, perca os seus bens e família, torturado ou morto [como Lutero proclama no hino 323, do Cantor Cristão, "Castelo Forte":
Sim, que a palavra ficará,
Sabemos com certeza,
E nada nos assustará,
Com Cristo por defesa.
Se temos de perder,
Os filhos,bens,mulher,
Embora a vida vá,
Por nós Jesus está,
E dar-nos-á seu Reino.].
Sim, que a palavra ficará,
Sabemos com certeza,
E nada nos assustará,
Com Cristo por defesa.
Se temos de perder,
Os filhos,bens,mulher,
Embora a vida vá,
Por nós Jesus está,
E dar-nos-á seu Reino.].
Portanto, a nossa conclusão é de que o dom de cura era especialmente ministrado em momentos específicos, e de forma bastante restritiva, no sentido de não ser um acontecimento trivial e corriqueiro, como muitos hoje querem fazer parecer. Ao se afirmar que o problema é de fé, a glória da cura passa a ser do homem, sem o qual não haveria o dom. Mas sabemos que Deus é sempre glorificado, e ninguém pode tirá-la. É algo que os cristãos devem pensar: há uma divisão de ações entre Deus e os homens, no sentido de que algo que o Senhor quer fazer não acontecerá porque impedimos?... Especialmente aos calvinistas gostaria de deixar essa reflexão. E, se Deus divide conosco a decisão da cura, no sentido exposto acima, de que se não quisermos a sua vontade decairá, mas se desejamos e a cura acontece, a glória não deve ser dividida com o homem? Não é talvez por isso que muitos são exaltados quase à altura de Deus? Porque quem assim o faz reconhece nesse homem um poder e uma decisão de semideus? E vou mais além: não há um espírito de falsa-modéstia, de dissimulação [consciente ou não] quando não assumimos isso e dizemos, da boca para fora, "não, a glória é somente de Deus"?
Por estes e vários outros motivos, mas especialmente pelo testemunho da palavra de Deus, não nos curvamos ao modernismo e ao imediatismo de aceitar os dons apostólicos como contemporâneos. Certamente eles veem mais para cegar ou manter cegos os ímpios do que para iluminar os salvos.
Notas: 1) Aula ministrada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
Por estes e vários outros motivos, mas especialmente pelo testemunho da palavra de Deus, não nos curvamos ao modernismo e ao imediatismo de aceitar os dons apostólicos como contemporâneos. Certamente eles veem mais para cegar ou manter cegos os ímpios do que para iluminar os salvos.
Notas: 1) Aula ministrada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
2) Uma análise mais profunda está disponível no áudio desta aula, onde são abordadas questões e passagens bíblicas não examinadas no texto, como Mt 9:18-26, 15:29-31 e Atos 3:1-10, inclusive a ligação de Israel e os judeus com a incredulidade em Cristo;
3) Baixe está aula emAula 76 - Dons V.MP3