Há vários argumentos que são utilizados para a não aplicação da Lei divina no governo civil. Alguns alegam que o Estado é laico e, portanto, não tem de ter vínculo algum com religião alguma. Essa é uma grande conversa fiada, pois o Estado, a despeito de se dizer laico, age de maneira antireligiosa, como se fosse possível governar neutra e isentamente. O fato é que o Estado não é neutro, nem isento, e ao agir antireligosamente, em especial com relação ao Cristianismo, demonstra sua parcialidade, e o que é pior, uma autosuficiência que o coloca no lugar de Deus, como um ídolo, do qual até mesmo cristãos são adoradores. Vão dizer que não, o que simplesmente acontece é uma separação entre religião e Estado, mas, pergunto: quem autorizou essa separação? Em quais pressupostos ela aconteceu? Quem é o seu beneficiário? E, ainda, os seus fundamentos objetivam a glória de Deus ou a idolatria?
Ao se fazer a separação arbitrária entre religião e Estado está-se tentando separar Deus do seu governo, como se fosse algo possível. Na verdade, o que existe é uma rejeição completa e total a qualquer idéia de Deus, mais detidamente o Deus bíblico, absoluto e Senhor de tudo o que foi criado e há no universo; e dessa forma o homem se considera autônomo, dono do seu nariz, independente de qualquer influência e autoridade divina. Quando o homem natural alega a “separação”, está a pensar e fazer algo que lhe é inerente, em sua corrupção, em seu senso moral caído, em seu prazer no pecado, ainda que esteja a dizer que não. Mas o que levaria um cristão a defender tal coisa? Ignorância, má-interpretação ou uma fé distorcida? Pode-se alegar que a história nos revela a nefasta ligação entre religião e Estado. Pode-se alegar que essa união nunca deu certo, e de que a “separação” é o melhor. O exemplo seria a teocracia islâmica, diria um defensor do laicismo. Mas pode o islamismo ser padrão moral e ético para um cristão? O próprio fato dos países islâmicos não serem cristãos, nem se pautarem na lei divina, já revela que seus princípios e premissas são falsos e o governo em si mesmo é falso em relação à verdade. Por ser uma mentira, um embuste, não pode ser parâmetro para um governo levado à cabo pela legitimidade da lei divina. Da mesma forma, o catolicismo não pode servir de medida comparativa. Assim como qualquer governo que se abstenha da lei para se livrar de Deus.
Apelar também para o efeito noético do pecado parece-me uma válvula de escape que não livra o homem de sua responsabilidade. Seria o mesmo que um ladrão justificar o seu crime porque não conseguia resistir a possuir o objeto do furto. O objetivo é garantir a impossibilidade de aplicar-se a lei, não porque ela falha em alguma coisa; não porque ela não é o padrão verdadeiro de justiça; não porque haja algo melhor que ela; não que seja imperfeita em algum aspecto; mas porque somos incapazes de torná-la apropriada e eficaz em sua praticabilidade. Em linhas gerais, fazemos como os fariseus que ao tentarem se mostrar inocentes em relação aos seus pais que derramaram o sangue dos profetas, acabaram por encher as medidas deles, testificando serem filhos de assassinos [Mt 23.30-32]. Ao acusarmos aqueles que não foram capazes de governar adequadamente segundo o padrão divino, justificando assim a nossa própria incapacidade, enchemos as medidas deles ao nos tornarmos herdeiros do seu legado não-bíblico. E o que é pior, desconfiamos do poder de Deus para operar a verdade mesmo no mundo de mentiras; para impor a luz em meio às trevas; para trazer justiça onde impera a injustiça. Isso é sinal de descrença, mesmo para os salvos.
Alguém pode dizer: “Não tenho nada com isso! Não me envolvo em política, nem quero nada com política. Apenas me preocupo com a proclamação do Evangelho de Cristo. Que cada um seja responsável pelo seu próprio erro!”... Alguém duvida que o ato de Pilatos lavar as mãos, quando da condenação do Senhor Jesus, não o isentou do pecado e da culpa? E de que seus interesses pessoais o levaram a não decidir pela absolvição do Justo e Santo? Seria essa atitude perdoável diante de Deus? Pedro diz que Pilatos, juntamente com Herodes, os gentios e os povos de Israel se ajuntaram contra Jesus, que foi preso, crucificado e morto pelas mãos de injustos [At 4.27, 2.23]. O “lavar as mãos” me parece uma atitude mais soberba e covarde do que a falsa acusação e a condenação injusta, pois aquele deseja se fazer limpo quando está sujo até o pescoço.
Ainda alguém poderá dizer: “Mas Cristo morreu por nós! Somos culpados da sua morte, também!”, o que é verdade. Acontece que esse deveria ser, mais do que um motivo, o melhor motivo para não apelarmos para a omissão, para a subida em um muro imaginário, onde estaremos negando fazer o certo, e o que é pior, desobedecer o mandato que nos foi entregue de salgar e trazer luz ao mundo. Ou é possível iluminar o mundo colocando a luz debaixo da cama ao invés de elevá-la, para que todos vejam? [Mt 5.14-15]. Isso é indiferença ou apelar para a indiferença em relação à vida política como se ela não influenciasse e determinasse como andará a sociedade e o mundo; implica em se dar as costas à injustiça, à imoralidade como se não afetassem a vida das pessoas, trazendo-lhes danos; quando o nosso não envolvimento apenas diz o quanto somos egoístas e mesquinhos, e o quanto nos esforçamos em manter um ascetismo que não existe. Pelo contrário, a negligência em relação à política nos faz maldição quando deveríamos ser bênção também na vida pública, de tal forma que não poderemos olhar para o próximo e dizer que o amamos, sem parecer hipócritas.
Como já disse anteriormente, o Evangelho é um todo; uma parte não ficou no passado e outra pode ser aplicada hoje, para, talvez no futuro, nada disso ser relevante para a igreja e para o mundo. É o mesmo que picotar uma folha de papel e jogá-la do topo de um arranha-céu em meio à tempestade, e após terminada, descer e recolher os pedaços. A chance da folha não ser mais restabelecida em sua inteireza é praticamente certa. Por isso, alegar que certas partes da Bíblia não são requeridas em nosso tempo é torná-la irrelevante em todos os tempos. Não somos nós que escolhemos o que se deve obedecer ou não na Escritura, mas o próprio Deus diz que ela é toda “proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça” [2Tm 3.16]; e, de outra forma, se ela pode ser aplicada individualmente o que impede que seja aplicada coletivamente? Ou estamos dispostos a guardá-la em nosso íntimo a fim de não sermos responsáveis por ensinar, redargüir, corrigir e instruir em justiça? E, também, não sermos ensinados, redargüidos, corrigidos e instruídos em justiça? Não estaria assim assegurada a manutenção da independência e autonomia em relação à Palavra? É possível se apelar para a irresponsabilidade, para o autonegar-se à obrigação, e não rejeitá-la?
A queda elevou ao máximo a corrupção da alma humana, ao ponto do homem ser capaz de cometer crimes inimagináveis para satisfazer o seu prazer maligno. Contudo, Paulo afirma que temos a mente de Cristo, pois “o espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido” [1Co 2.15-16]; e o novo-nascimento nos dá isso: a oportunidade de exercer sabiamente os princípios que nos foram dados por Deus. E esse poder não estaria nas mãos de um homem, ou de um pequeno grupo de homens, mas do Corpo de Cristo. Mas aí entra a questão da unidade... de que nós não pensamos igualmente, e de que há muitas interpretações díspares entre os vários grupos de cristãos. Acontece que a lei é objetiva e clara em seus princípios. O que se quer é relativizá-los ao ponto em que negá-la se torna a opção mais fácil, dentro de um pensamento essencialmente humanista e antibíblico. E assim, o homem acaba por tomar em suas mãos o destino daquilo que é certo e errado, à revelia do padrão de Deus, o único que seguramente definiu o que é verdade, e o que é mentira, como a negação da verdade.
Um dos versos mais usados para defender a “separação” entre Deus e o governo civil é a frase proferida por Cristo aos fariseus e herodianos, quando lhe apresentam a moeda de tributo [1]: “Daí pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” [Mt 22.21]. Mas essa distinção que o Senhor faz não seria, exatamente, por que o governo de César era antibíblico? Ao meu ver, o Senhor está dizendo: se vocês, hipócritas, fossem obedientes a Deus, não seriam servos de César, nem a ele deveriam tributos. Mas já que a moeda tem a esfinge de César, devei a ele a liberdade perdida; pois se são devedores de César, o que dirá de Deus? Se tivessem dado a Deus anteriormente, não teriam de dar agora a César... Porque, assim Paulo também disse: não é possível haver sociedade entre justiça e injustiça? E comunhão entre luz e trevas? E concórdia entre Cristo e Belial? Ou parte entre o fiel e o infiel? [2Co 6.14-15]... Ainda mais contundentemente: é possível o consenso entre o templo de Deus com os ídolos? [v.16]. Nesse aspecto, me parece claro que Cristo não está defendendo uma separação entre Deus e o governo civil, mas entre Deus e um governo ímpio e idólatra, pois onde o Senhor não é reverenciado e glorificado, não é possível haver comunhão. Porém, se o governo de César fosse nitidamente bíblico, Cristo proferiria a mesma sentença? E, por quê? [2]
Deus, quando estabeleceu a lei, queria que o homem fosse governado por ele em sabedoria, justiça e santidade. Por isso estabeleceu juízes em Israel, e eles, ainda que pecadores, levaram ao povo a justiça proveniente da lei. Ao desejarem um rei, optaram pelo padrão humano de governo [o totalitarismo e a idolatria ganharam forma no monarca], e o que vemos agora é o mesmo padrão sendo sustentado e defendido por cristãos, e assim como os judeus fizeram, desprezam o bom conselho de Deus. Mas será dito: “Nunca houve um governo justo! Somente Cristo trará justiça à terra!”... Sim, certamente, jamais houve um governo justo, e Cristo é a própria justiça, mas não será que essa “realidade” não passa de um subterfúgio para acomodar a indolência no seio da igreja? E a igreja como o Corpo não se desvincular do seu papel ao ponto de não andar segundo a vontade do cabeça? Mas se tudo é determinado por Deus, do que está se queixando? Afinal, os governos atuais não são instituídos, sustentados por ele? Paulo não disse que são todos ministros de Deus?, é o que se pensa e diz... Porém, o que isso exclui-nos da obediência? Em qual lugar está escrito: Disse Deus: como decretei a desobediência, estais livres para desobedecer?... Ou, ao contrário, somos chamados à submissão?
As tentativas de se justificar tal atitude são muitas, desde a descontinuidade da lei na Bíblia até o seu desuso e arcadismo, como se o fato do homem considerá-la indigna de si [numa inversão de valores] a tornasse irrealizável em seu propósito eterno e imutável. Quando se abre mão de Deus e sua justiça, do governo de Deus sobre o homem em todos os aspectos e sentidos da vida, este deixa-se guiar por outros deuses e pela injustiça, o que revelará a desordem e a iniqüidade não somente dos seus "deuses" mas de si mesmo. Por isso a Lei tem de ser retomada; a moral cristã tem de ser retomada; valores como ética têm de retomar o seu devido lugar na sociedade; pois será através deles que a justiça se manifestará efetivamente, de forma prática, não apenas como um sonho utópico e intangível ou possível apenas na eternidade [nesse ambiente, o amor poderá ser visto e sentido, não apenas idealizado], não entre suposições e incertezas relativistas que apontam para lugar nenhum e nenhuma efetiva ação cristã na sociedade.
Sem a ordem divina, através da Lei, seus ensinamentos, orientações e sanções, o homem não deixará de ser o naúfrago sem qualquer bóia salva-vidas, a se ferir até o sangue em meio a um cardume de vorazes tubarões.
Nota: [1] O sistema monetário romano incluía o denário (denarius, em latim, plural denaris), uma pequena moeda de prata que era a de maior circulação no Império Romano [fonte: Wikipédia]. E isso me leva a crer que Cristo, ao indicar-lhes a esfinge de César, revelava que o produto da corrupção do povo e sua rebeldia contra Deus proporcionou que pertencessem a César, e assim fossem objetos da injustiça romana ao invés da justiça divina.
[2]Ora, a “separação” que Cristo faz é entre os valores de Deus e os valores humanos; entre os princípios perfeitos e eternos de Deus e os princípios imperfeitos e temporais do homem; entre o santo e o profano; de tal forma que se dê a Deus o que é de Deus, honra, glória e louvor, por sua plena justiça; e aos homens o que lhes é de direito, ainda que esse direito seja fruto da injustiça.