segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Cristianismo, Estado e Justiça - Parte 2: a blindagem do mal













Por Jorge Fernandes Isah

O que leva alguém a se considerar mais justo do que o outro? Ou o que pode levar o outro a crer-se mais justo do que o primeiro? Afinal de contas, qual é o padrão de justiça? O próprio homem? O Estado e suas leis? A tradição? Se é, quais são os seus fundamentos? As bases para a justiça são intelectuais e sentimentais ou empíricas? Um homem deve ser condenado ou absolvido por critérios gerais ou pessoais? A mesma lei que serve para um não serve para o outro, e vice-versa? Até que ponto nossas preferências devem se sobrepor à lei? Ou a lei é superior a elas? E por que defendê-la? E por que não defendê-la?... E assim, uns se acusam, outros se defendem; ninguém está certo, e todos estão errados? Outra pergunta: o homem antecede a moral ou a moral antecede o homem? Se a resposta for a primeira, tudo então advém dele; portanto, todos os padrões e julgamentos devem ser realizados a partir do antropocentrismo. Se a resposta for a segunda, então nem a moral nem a ética procedem do homem. E se não procedem dele, originaram-se de Deus, visto elas não serem entidades autônomas e autocriadas; e os padrões e julgamentos devem partir do teocentrismo, especificamente do teísmo bíblico, onde o próprio Deus se revelou na pessoa do Senhor Jesus Cristo.

Acontece que tanto a moral como a ética somente são possíveis de existir dentro de um padrão de justiça, de uma busca em se anular ou impedir a injustiça, que seria a manutenção de um direito, e de que esse direito não seja violado, nem impedido de se exercer. A justiça precede-as portanto, mas é através delas que será revelada. Por isso se criam leis em conformidade com a moral e a ética, e quando elas não estão presentes o que temos são leis que favorecem a imoralidade e a antiética. À margem do padrão de justiça, com o nítido objetivo de subvertê-la, anulá-la, e instaurar um novo padrão que reconheça as queixas, as reclamações do injusto, atendendo-lhe as reivindicações e regulando uma prática ou atividade que está em oposição ao estabelecido. De tal forma que o que era justo deixa de sê-lo, passando a ser injusto; e o que era injusto é alçado à categoria de justo, numa inversão da ordem a partir da desordem [Is 5.20]... Então, volta-se às questões anteriores: mas em quais bases o padrão foi alterado?

Alguém dirá: se a lei diz que algo é injusto, ele é. E ponto final. Porém, seria isso verdade? Pode a lei mudar o que é moral tornando-o imoral? Pode a lei transtornar o ético em antiético? Seria o mesmo que dizer que o elefante é um vegetal que se espalha no campo e serve de pastagem e pode ser devorado por um inseto chamado cigarrinha. Para se concluir que o mamífero se tornou, num passe de mágica, em capim [1].

O relativismo moral e ético permite que tudo seja mudado segundo o padrão pessoal e de “verdade” pessoal, sem que haja absoluto, e tudo esteja em constante mutação e evolução, a fim de acomodar todas as coisas ao seu tempo, resultando na supremacia dos valores subjetivos do senso individual; o que vale dizer que qualquer apreciação subjetiva, que revele as preferências de cada um, ainda que seja a mais estúpida, bizarra, e sem qualquer legitimação, produz o mesmo efeito que um juízo baseado no conhecimento objetivo. Assim um assassino confesso pode, até mesmo, se ver livre de uma punição se o padrão moral não considerar crime o homicídio. O mesmo acontecia com o canibalismo em tribos indígenas. O mesmo se dá em rituais macabros, ainda hoje. O mesmo em religiões cujas normas e regras prescrevem o sacrifício da esposa quando o marido morre, ainda hoje. Do assassinato de bebês que nascem com alguma anormalidade física, no caso de tribos silvícolas, ainda hoje. De países, como a China, onde se pratica o infanticídio feminino, ainda hoje. O que dizer dos abortos, da pedofilia, do exibicionismo sexual [de homo e héteros], do incesto, do homossexualismo, da corrupção, etc, que não são punidos? Em outras palavras, pecados claramente definidos na Escritura como tal, e que deveriam receber uma punição justa segundo a lei de Deus, são cometidos naturalmente como parte de alguma cultura ou sociedade; não são constrangidos a extinguirem-se, antes ganham recrudescimento e o aval do mundo moderno; e, de certa forma, a igreja contemporiza com eles, ao julgá-los normais pelo padrão da Queda e da natureza caída do homem.

O erro está em não se distinguir certas coisas como imutáveis, a lei divina, por exemplo, diferenciando-as das mutáveis, como a moda, os meios de transporte, a linguagem, etc, e até mesmo a lei humana. Mas, por que essas variações determinariam a mutação da lei divina, estabelecida pela moral imutável proveniente do Deus imutável? Não há aqui um componente relativista em que a lei de Deus é invariável para os crentes [e mesmo para muitos, não o é], enquanto o mundo pode adaptá-la aos seus interesses escusos? Quando se defende esse conceito, o que se sobressai é a sua incoerência ao designar áreas de atuação distintas a grupos distintos alheio à verdade estabelecida por Deus, que não estabelece essas diferenças mas declara a todos a unidade de sua obediência, como verdade objetiva e absoluta em sua independência de qualquer convenção humana.

Por isso, quando um cristão não se indigna, não se levanta contra essas abominações, as quais Deus odeia, e se mantém numa área aparentemente segura em suas relações sociais, ele se opõe ao Evangelho. Por favor,  que algum desavisado não distorça ou confunda o que eu disse. Não estou a propor o pegar em armas e sair à guerra, matando todos os pecadores [muitos deles, eleitos para a salvação]. Nem para uma cruzada moral em que nós mesmos, muitas vezes, somos imorais. Nem para uma “limpeza” social, étnica ou religiosa. Uma inquisição, caça às bruxas, ou a tomada do poder à força. Nada disso. Como escrevi na Parte 1, tenho de sofrer o dano, mas jamais posso usar essa prerrogativa [um privilégio segundo Paulo (Fp 1.21)] para impor o dano sobre o outro, com o risco de ser injusto e concorrer para o mal.

O que temos visto, de forma sistemática, é uma perseguição organizada contra o pensamento religioso, especialmente o pensamento cristão. Qualquer alusão à Bíblia, a Deus, moral e ética cristãs, rapidamente é desaprovado e condenado. Como se ao citá-los uma luz vermelha acendesse e piscasse nervosamente, e uma sirene tonitruante alertasse para o perigo iminente. Mas perigo a quem? E, por quê? Não seria por ser uma ameaça aos anseios do mundo? Não seria por se opor a ele? Não seria uma autoproteção da iniqüidade? Uma blindagem do mal? Que levou o homem a não glorificar a Deus, nem lhe dar graças, “antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu”? [Rm 1.21]. Pois o mundo odiou e odeia a Cristo, assim é necessário que também sejamos odiados por ele [Jo 15.16-21], do contrário, se não somos perseguidos, há algo de errado [e não falo de prisão, tortura e morte apenas, o que acontece em várias partes do mundo, mas da rejeição, da segregação, seja no lar, no trabalho, na escola, entre os vizinhos; que pode levar a várias injustiças, desde o ser ignorado e preterido nesses ambientes até mesmo à prisão, tortura e morte, enfim]. Se o mundo nos vê com indiferença, é sinal de que as trevas estão em vantagem e nossos frutos não são dignos de glória. Se o mal não é abalado em sua malignidade, é porque nossos alicerces ruíram ou não foram ainda erguidos. Estamos como aquele néscio que escutou as palavras do Senhor mas não praticou, e construiu a sua casa sobre a areia, “desceu a chuva, correram os rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e caiu, e foi grande a sua perda” [Mt 7.24-27].

Mas sempre há alguém que apelará para o amor incondicional, aquela muleta que tem o intento de autoprotegê-lo e proteger seus pares, num corporativismo que inexiste na fé cristã. O próprio Senhor disse: “Se me amas, guardai os meus mandamentos... guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” [Jo 14.15, 23]. Parece-me evidente que o amor de Deus não é incondicional e genérico, como muitos pensam, mas restrito àqueles que guardam os seus mandamentos por amá-lo; pois quem guardar os seus mandamentos, permanecerá no seu amor, assim como Cristo guardou os mandamentos do Pai, e permaneceu no seu amor [Jo 15.10].
  
Não vou entrar na questão do Decreto eterno, muito menos na questão da eternidade e temporalidade, o fato é que, se alguém não guarda os mandamentos divinos e, pelo contrário, rejeita-os deliberada e acintosamente, numa exibição desavergonhada de dizer em alto e bom som que ama o pecado e a ele se submete, como uma forma de provocação, de repúdio à vontade e determinação de Deus, esse não tem o seu amor. E se não o tem, não pode amá-lo, porque antes de o escolhermos, ele nos escolheu; antes de amá-lo, ele nos amou primeiro [Jo 15.16, Ef 1.5, 1Jo 4.19]. Deus não tem um guarda-chuvas em que todos podem ficar debaixo, ao abrigo; mas ali se ajuntam apenas os que ele elegeu, os quais pelo sangue de Cristo foram propiciados e protegidos da ira vindoura. A mesma ira que cairá sobre os ímpios e inconversos pela justiça de Deus; pois, “se a nossa injustiça for causa da justiça de Deus, que diremos? Porventura será Deus injusto, trazendo ira sobre nós (falo como homem)? De maneira nenhuma; de outro modo, como julgará Deus o mundo?” [Rm 3.5-6]. Apelar ao amor para anular a justiça é o primeiro erro de muitos que o ímpio comete; uma sentença autocondenatória, que ao invés de beneficiá-lo, condená-lo-á.

Paulo relata que a ira de Deus se manifesta do céu sobre toda a impiedade e injustiça dos homens, que detém a verdade em injustiça [Rm 1.18]. As conseqüências de se torcer a justiça tornando-a injustiça é que Deus os abandonou  às paixões infames, entregou-os a um sentimento perverso, recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro, fazendo coisas que não convêm [Rm 1.24-31]. São obstinados em fazê-las, não têm arrependimento, não se sujeitam a nada além do próprio prazer; praticam a injustiça sem qualquer temor, trazendo o mal, o vitupério, a ignomínia a si mesmos, mas também às vítimas de seus atos, os quais são inimigos da cruz de Cristo “cujo fim é a perdição, cujo Deus é o ventre, e cuja glória é para confusão deles, que só pensam nas coisas terrenas” [Fp 3.19].

O que me faz voltar à seguinte questão: o ímpio tem medo da lei porque ela o acusa, revelando o seu crime e imputando-lhe uma pena ou castigo. O seu temor é justificado dentro de um padrão normal de anormalidade espiritual. Ele temer a justiça de Deus, também. Ele ansiar por um Deus complacente e conivente com o pecado, idem. Mas por que muitos crentes insistem em rejeitar a lei, como se fosse injusta e, ainda, como se ao desprezá-la pudesse impedir as suas conseqüências sobre os infratores? Porque, em última análise, ninguém está livre do juízo eterno e da condenação, salvo apenas os que foram comprados por Cristo na cruz. Então, tenta-se fugir do que não se pode fugir? E essa fuga não é uma tentativa frustrada de se fugir de Deus, também? E, alguém pode obter êxito nessa tentativa? Não. O crente sabe disso, e sabe que a lei, mais que o falso amor [aquele amor transigente que perverte a verdade em mentira, e faz da justiça injustiça, e de Deus um amante do caos] pode levar o pecador ao arrependimento, como o aio a Cristo. Sem nos esquecer de que o caráter principal da lei é preservar a moral e ética bíblica, guardar a justiça, e condenar o mal. Mas, por mais que não se queira, o castigo pode ser pedagógico na construção da santidade no homem.

O exemplo de Davi é emblemático. Após adulterar com Bate-Seba e de matar o marido dela, Urias, por quase um ano manteve a sua mente anestesiada em seus pecados. Deus enviou o profeta Natã que usando a história de uma cordeirinha, a única de um pobre homem que a amava como uma filha, teve-a tomada por um homem rico para banquetear um viajante, o que fez o rei encher-se de furor contra o homem rico. Davi percebeu que aquele homem havia cometido uma injustiça, e disse: “Vive o Senhor, que digno de morte é o homem que fez isso... porque fez tal coisa, e porque não se compadeceu” [2Sm 12.5]. Porém, os seus crimes não lhe trouxeram o mesmo senso de justiça. Então, o profeta disse-lhe: “Tu és este homem... Então disse Davi a Natã: pequei contra o Senhor. E disse Natã a Davi: Também o Senhor perdoou o teu pecado; não morrerás. Todavia, porquanto com este feito deste lugar sobremaneira a que os inimigos do Senhor blasfemem, também o filho que te nasceu certamente morrerá... E buscou Davi a Deus pela criança, e jejuou Davi, e entrou, e passou a noite prostrado sobre a terra... E sucedeu que ao sétimo dia morreu a criança... Então Davi se levantou da terra, e se lavou, e se ungiu, e mudou de roupas, e entrou na casa do Senhor, e adorou.” [2Sm 12.7, 13-14, 16, 20].

Interessante que não vemos Natã dizer a Davi: “Não se esquente! Deus te ama!... isso vai passar”, o que muitos, desajuizadamente, proferem aos quatro cantos como se fosse um mantra, como se a repetição sem sentido de algo que a pessoa desconhecesse, pudesse torná-lo real. Da mesma forma, Davi não se fiou no amor de Deus, mas sujeitou-se a ele; e em sua mente estavam escritas as palavras que Paulo proferiria séculos depois: “E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” [Rm 8.28]. E o bem para Davi naquele momento era o arrependimento, e voltar-se para o seu Senhor.

Outro componente a se pensar é o da glória de Deus. O nome dele havia sido blasfemado por causa dos crimes de Davi, e era necessário que todos vissem que, mesmo sendo rei, ungido por Deus, o castigo lhe sobreveio, e a sua condenação era pública, para que não servisse de mau-exemplo e estimulasse a outros seguirem os seus passos pecaminosos. Portanto, a aplicação da lei tem o fim de inibir e coibir o mal, também.

Pode-se apelar para o argumento de que Davi já era um crente. Porém, se Deus castiga os que são seus por amor, o que não fará com os ímpios que não ama? Se o julgamento começa pela casa de Deus, qual não será o fim dos que são desobedientes ao evangelho de Deus? [1Pe 4.17].

Enquanto alguns defendem um cristianismo do lado branco e atacam um cristianismo do lado negro [2], seja lá o que isso queira dizer, o cristão tem de se voltar e se apegar ao Cristianismo bíblico, e nada mais. O padrão é bíblico para a igreja. Por mais aceitação que determinada prática tenha nos últimos anos ou séculos, ela não representará a verdade se não estiver em conformidade com a Escritura. Como disse em algum lugar, o Evangelho é um, revelado progressivamente, mas em unidade, coesão e verdade. Quando se fala de amor e se despreza a justiça, não se ama. Quando se fala em justiça sem amor, é-se injusto. As duas coisas andam juntas, nem antes nem depois, nem mesmo lado a lado, mas intrínsecas, de tal forma que uma não subsiste sem a outra.

Por mais que Cristo estivesse entre pecadores [e todo o mundo era-o, como é], e por mais que se repita que ele ama o pecador, não podemos associá-lo ao pecado ou a contemporizar com o pecado.  Como Deus e Santo, essa comunhão é impossível. Assim como o é entre luz e trevas. Então, por que estamos mais dispostos à escuridão, em mantê-la, do que em dissipá-la? Porque, como um sedentário que se prepara para uma maratona, e os exercícios lhe causam dores terríveis pelo corpo, a verdade dói, e nos causa muitas dores. Mas à medida que a conhecemos, nos tornamos familiares dela, as dores vão passando, e como o homem já preparado para correr quilômetros não sentimos o esforço, nem o cansaço. Prosseguindo para o alvo, esquecemos das coisas que ficaram para trás, e avançamos para as que estão diante de nós, em busca do prêmio: chegar à perfeição e à medida da estatura completa de Cristo [Fp 3.13-14, Ef 4.13].

Para andar naquilo em que já chegamos, segundo a regra de que “o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” [Gl 6.14].

Ao invés de blinda-lo. 

Notas: [1] O capim-elefante é uma gramínea perene (Penisetum purpureum) natural da África e introduzida no Brasil por volta dos anos 1920.
[2] Existe no momento uma cruzada entre os cristãos, em que aqueles que acusam os que acusam sentem-se privilegiados ao acusar, e estabelecem limites que também são estabelecidos pelos outros, numa luta estúpida e nada cristã, como se estivessem disputando um cabo de guerra imaginário onde o que vale é uma verdade pessoal e transferível. Ao se opor ao dogmatismo e ao sectarismo, acusando fulano e beltrano com termos e expressões pouco recomendáveis até mesmo para um ímpio, eles se tornam tão o mais dogmáticos e sectários que seus opositores. Ao acusar o exclusivismo e defender um inclusivismo, o inclusivismo deles é mais exclusivista do que o dos seus oponentes. Ao defender que até mesmo o tolo pode ser usado por Deus para realizar a sua obra, mas o seu oponente não, ele contradiz a si mesmo. Ao tentar se fazer diferente, se iguala na mesmice que acusa haver apenas nos outros. Por isso, não adianta ir apenas à Bíblia para buscar comprovação do que se crê, mas deve-se buscá-la para, sobretudo, ter a mente transformada e guiada pelo próprio Espírito de Deus.
[3] Ainda não falei do Estado propriamente dito, e espero fazê-lo, mais cedo ou tarde, se Deus quiser.

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