Por Jorge Fernandes Isah
Recebi a seguinte mensagem do irmão Fábio, em relação aos comentários ao livro “A Soberania Banida”:
“Agora, a razão mesmo de escrever é, obviamente, sobre o fato de Deus ser o autor do mal. Eu concordo contigo que tudo aponta para essa conclusão, mas o que eu gostaria de saber é porque outros gigantes da fé não ousaram dar esse passo? Veja, o próprio autor do livro que você tratou, na hora “H”, resolve frear e não afirma o fato de Deus ser o autor do mal. Várias vezes eu ouvi que seria humildade intelectual não afirmar isso. É como se Deus tivesse criado um limbo, um vácuo teológico que na nossa pequenez deveríamos assumir. Você tem algum post ou estudo mais aprofundado no qual poderíamos ver ambas as idéias e seus argumentos e refutações?
Outra: é isso que chamam de hiper-calvinismo, não é?
Querido, Jorge, muito obrigado pela sua atenção.
Aguardo resposta”
Caro Fábio,
acredito que as suas indagações são as de muitos que lêem o Kálamos e outros blog “heréticos”, net afora. Achei melhor, por ser um assunto sobre o qual vira e mexe estão me inquirindo, expor o que penso novamente, e, assim, responder a todos, mesmo os que ainda não se dispuseram a perguntar. Então vamos à resposta.
O fato é que todo calvinista acredita no decreto eterno [e não conheço ninguém que não o reconheça]; de que Deus preordenou e predestinou todas as coisas no universo, de tal forma que nada, absolutamente nada, pode frustrar a sua decisão. Esse me parece um ponto pacífico entre os calvinistas: reconhecer a soberania divina em tudo.
Há, porém, alguns elementos que são distinguíveis em algumas correntes. Por exemplo, os compatibilistas acreditam que o homem tem o poder de decisão a partir da sua natureza. Defendem que o homem, para ser responsável moralmente, tem de ser livre em sua decisão e ação. Para eles, responsabilidade está diretamente relacionada à liberdade da vontade, que é causada internamente no homem, ainda que ele não possa evitá-la. Por isso, concluem que a Bíblia afirma um paradoxo, o qual é: o Deus completamente soberano, sem que nada aconteça alheio à sua vontade, convivendo com a responsabilidade humana a partir da liberdade de decisão. Outro nome que dão ao paradoxo é o de “mistério” ou “antinomia”.
Os deterministas bíblicos, ao contrário, não reconhecem esses princípios [há de se reconhecer que mesmo o compatibilista é determinista em algum aspecto, por isso ele é chamado de determinista suave]. Escrevi alguns textos sobre o assunto: “Todos esses anos... e nunca fica mais fácil”, “Mysterium Compatibilista”, "Dupla predestinação, o barro decaído e a arbitrariedade de Deus" e “Preso na própria armadilha”, dentre outros.
Para facilitar o entendimento, definirei alguns termos:
1)Compatibilismo: É a idéia de que não há conflito entre o determinismo e o livre-arbítrio, de tal forma que eles são compatíveis. Ou seja, é a visão de que as ações humanas são causadas por condições antecedentes, controladas por Deus, mas o homem permanece um “livre-agente moral”, pois agirá conforme a sua escolha, sem nenhuma compulsão ou restrição externa.
2)Determinismo teológico: o Deus pessoal, racional e soberano predeterminou e preordenou todos os eventos no universo, inclusive os pensamentos, decisões e ações humanas, desde o seu início, meios e fins segundo a sua sábia vontade.
3)Fatalismo: Os eventos são predeterminados por forças impessoais, cegas e irracionais [o acaso, p. ex].
4)Paradoxo: Declaração aparentemente verdadeira que leva a uma contradição lógica. É a afirmação simultânea de duas proposições contraditórias.
Agora, leiamos um trecho da CFW, Seção III.1: “Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”.
Entendo que esta definição é contraditória, ainda que alguns digam que não. Nela temos a completa e total soberania de Deus em decretar tudo desde sempre, segundo a sua vontade, imutavelmente. Isso inclui todas as criaturas, eventos e “forças” existentes no universo, físicas e espirituais. Como o próprio Deus diz de si mesmo: “Para que se saiba desde o nascente do sol, e desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro. Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas” [Is 45.6-7]. E, em seguida, afirma-se que Deus não é o autor do pecado e que nem é violentada a vontade da criatura, de tal forma que os eventos secundários acontecem “livremente” pela vontade do homem. Ao se afirmar a liberdade dos eventos secundários, fico-me a perguntar: como Deus pode predestinar o final e prevê-lo infalivelmente se os homens são livres nas causas secundárias? É necessário um malabarismo danado para harmonizar os dois conceitos, o que resultará na corda esticada e vazia, e corpos estatelados no chão.
Há pessoas que relacionam a criação do “mal” com catástrofes, epidemias, e outros fenômenos físicos, por conta da Queda, de tal forma que eles ocorrem mais como uma resposta ao pecado; e assim, Deus jamais seria o criador do “mal” metafísico. Acontece que mal é mal, sejam os pensamentos ou as ações. Não vejo como distinguir um do outro, essencialmente. Mas, suponhamos que Deus criou ou ordenou o mal físico; quem criou o mal metafísico? Se ele não foi criado, resta-nos reconhecer que o mal é autocriado, uma força eterna e que se opõe a Deus desde sempre. Contudo, sabemos que todas as coisas foram criadas por Deus, e por ele são sustentadas pela palavra do seu poder [Jo 1.3, Hb 1.3].
Acontece que as pessoas reconhecem que Deus é o criador de tudo o que é bom [numa perspectiva humana do que seja bom] e de que o mal é obra das suas criaturas. De tal forma que o homem caiu no Éden por influência maligna; mas, e Satanás? Estando no céu, diante da glória de Deus, sem nenhum contato com o mal [visto não haver o mal ainda], como pode querê-lo? É-se possível querer algo que não se conhece? E com isso, ele e 1/3 dos anjos caírem? O mal, como uma força contrária a Deus e da qual ele não tem controle, ao ser criado pelo diabo, torna-o quase tão poderoso como Deus. Mas sabemos que ele não passa de uma criatura. De um lacaio de Deus, como Lutero disse. Então, a questão é: como Deus pode ser o criador do mal? Deus é o criador do mal metafisicamente falando, pois nada pode vir a existir sem que ele o faça vir a existência. Porém, quem o realiza do ponto de vista físico são suas criaturas, seja por pensamentos, ações, etc. Deus é o criador do mal, mas Deus não pratica o mal. Sabendo que, mesmo o mal, está incluído no perfeito, santo e justo plano divino. O calvinista que crê no decreto eterno e imutável não pode crer que o mal, o pecado, a queda, etc, não fazem parte da Criação. E se fazem parte da Criação, Deus é o autor deles.
Quanto à pergunta: “Por que outros gigantes da fé não ousaram dar esse passo?”. Bem, seria bom se pudéssemos perguntar a eles. Muitos, provavelmente, repetiriam o que escreveram ou pregaram. Acontece que todos, sem exceção, chegariam à mesma conclusão, mas, no meio do caminho, optaram por recuar e dar uma explicação convencional, que agradasse a todos, gregos e troianos. Darei duas hipóteses para isso:
1) A subscrição da CFW. Por pertencerem a igrejas que subscrevem a CFW ou outras confissões derivadas dela, em que a questão do decreto é colocada de forma compatibilista [Deus soberano e o homem livre em sua vontade], eles não querem se tornar “rebeldes” e preferem sustentar uma contradição a enfrentarem o Concílio.
2) O “temor” de se acusar Deus de criador do mal ou do pecado [e não vejo humildade nisso, mas desprezo à verdade] e se verem numa situação desconfortável diante dos homens. Em última instância, se Deus decretou o pecado, a Queda, e todos os eventos no universo, inclusive, tragédias, guerras, mortes, epidemias, etc, ainda que suas criaturas sejam os agentes morais, não há como não reconhecê-lo como o autor do mal por seu decreto eterno.
Ao excluir-se o mal, o pecado e as tragédias do decreto, significa dizer que Deus não é soberano, e de que essas coisas aconteceram e acontecem alheios à sua vontade. Seria, mais ou menos, o que os teólogos do processo e da teologia relacional sustentam, e que se confronta flagrantemente com o que o texto bíblico nos revela. Para se defender Deus, ataca-se o próprio Deus. Para defendê-lo, suprime-se a revelação especial, e assim, os textos em que o Senhor ordena, por exemplo, a morte dos cananeus, é visto metaforicamente, ou o povo de Israel agiu por conta própria e pôs a culpa em Deus, quebrando um dos mandamentos da Lei, mentindo. Isso levará à incredulidade, e de que a Bíblia não é a fiel e inerrante palavra de Deus. E ao descrer-se do texto bíblico, o descrédito é transmitido a Deus, o qual o revelou; de forma que não se pode conhecê-lo, pois o que foi revelado não é verdadeiro. O ciclo é de ceticismo, em que a verdade é relativizada para que a mentira prevaleça.
A sua última pergunta é sobre o hipercalvinismo. Há muita bobagem sendo dita sobre o assunto. Por exemplo, eu não creio na graça comum. Creio apenas na graça eletiva. E, por isso, sou chamado de hipercalvinista. Creio na dupla-predestinação, logo, sou hipercalvinista. Mas a questão que difere mesmo o Calvinismo do Hipercalvinismo resume-se à chamada do Evangelho. Para o hiper, a proclamação do Evangelho para se crer e arrepender deve ser pregado apenas aos eleitos. Como eles saberão quem é ou não eleito, é o grande problema; um problema insolúvel. Como disse na última postagem, por mais hipercalvinista que alguém se diga, não conheço quem seja um “caçador-de-eleitos”. Isso é tolice, especialmente porque o chamado ao crente é para proclamar o Evangelho a toda criatura, em todos os lugares e tempo. Ser hipercalvinista é estar em rebeldia e desobediência ao Senhor.
Logo, crer na dupla-predestinação, que Deus elegeu uns para a salvação e outros para a perdição, ou não crer na graça-comum, não faz da pessoa um hipercalvinista. Ela poderá ser chamada de calvinista de seis ou sete pontos, um ou dois pontos além dos cinco estabelecidos nos Cânones do Sínodo de Dort [TULIP], mas jamais será um hiper.
Resumidamente, é esta a minha resposta, Fábio. Se puder ajudar em mais alguma coisa, estou à disposição.
Abraços.
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