Por Jorge Fernandes Isah
Então, vou entrar em um assunto que não agradará a muitos. Sou acusado, as vezes, de dogmatismo. Na verdade, para mim, não é uma acusação, é mesmo um elogio, pois me considero realmente um dogmático. E por que gosto tanto do rótulo? Simples, porque, para se ter um princípio, ele tem de ser estabelecido dogmaticamente. Por exemplo, o "Sola Scriptura" é um princípio estabelecido pelo axioma de que a Escritura é a verdade, e nada mais além da verdade. Quando alguém defende este princípio, não pode defendê-lo sem aplicá-lo. Se o faz, ele está demolindo o princípio, não o princípio em si mesmo, mas a sua certeza nele. Ainda que um ou dois digam que a Escritura é a verdade, mas ao se deparar com o texto bíblico considera-o com falhas, incongruências ou contradições, ele não tem o princípio do "Sola Scriptura" como absoluto. O que ele diz defender não está em harmonia com o seu pensamento. E ele então tem dois dogmas: o primeiro, diz crer que a Escritura é a verdade; o segundo, reconhece e defende intelectualmente que a Escritura não é infalível e santa. Na prática, ele se contradiz. Mas a qual tipo de verdade ele crê, então? Ele não crê na verdade, mas numa possibilidade de verdade, de que, como leitor ou ouvinte, pode ou não perceber algum aspecto da verdade, e de que a verdade não é objetiva. É algo intuitivo, experiencial, sensitivo, e que guarda em si um grande problema: como o indivíduo poderá se aperceber de que o que leu ou ouviu é verdadeiro ou não?
Quem diz que a Escritura é a verdade, mas crê que há nela paradoxos ou antinomias [1], desenvolve um conflito de interesses, pois acreditará em um dos pontos, jamais em ambos, visto serem antagônicos. Para se afirmar que a Bíblia é a verdade, terá também de afirmar que nela não há paradoxos. Para se acreditar em paradoxos, não se poderá acreditar que a Bíblia é a verdade. Ou seja, uma das afirmações tem de ser verdadeira e a outra falsa. Ambas não podem ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo. O Senhor Jesus aplicou muito bem este conceito quando do Sermão do Monte: "Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna" [Mt 5.37].
O paradoxo ou a antinomia confunde, ainda que muitos utilizem-no com o intuito de se elucidar determinado problema, que consideram insolúvel, incompreensivo. De fato, ele não traz esclarecimento algum, antes permite que as dúvidas se estabeleçam e, através delas, o engano seja alçado ao mesmo nível da verdade, e veja mesmo a superá-la. Não foi o que a serpente fez com Eva? Fazendo-a acreditar que a verdade era mentira, e de que a mentira era a verdade? Eva considerou inapropriadamente que Deus não era santo, perfeito e infalível. Para a perdição dela, e a nossa, cogitou que a ordem divina era incoerente com a afirmação da serpente, o que era de fato, mas descartou o primeiro princípio pelo qual deveria se nortear: de que Deus é verdadeiro e não pode mentir [Tt 1.2], para se fiar no princípio de que a serpente era verdadeira e não poderia mentir. Num dado momento, ela ficou talvez em dúvida; ela pensou na contradição entre as duas afirmações; considerou que as duas poderiam estar certas, mas o fato é que, em seguida, seu pensamento se direcionou e desviou-se da verdade para a opção errada, a mentira, e ela escolheu o que não deveria escolher, porque creu no que não deveria crer.
Assim também acontece com o homem que se diz a-dogmático; ele simplesmente escolhe defender um princípio falso e descartar o princípio verdadeiro. Ele permanece um dogmático; contudo, seus fundamentos partem de princípios não verdadeiros, já que a negação de um princípio é um princípio em si mesmo. O que vale dizer que ninguém pode recusar um dogma sem ser dogmático. A negação parte da afirmação de se negar, de dizer não, de não reconhecer ou admitir aquilo que se nega. Logo a negação está fundada no enunciado de que o objeto negado deve ser renunciado voluntariamente.
O dogmatismo, historicamente, se contrapôs ao ceticismo, que afirmava ser impossível se conhecer a verdade. O dogmático reconhece a capacidade humana de se conhecer a verdade absoluta, insofismável, indiscutível. Mas quando um cético [seria um pós-moderno, um relativista, ou mesmo um liberal, nos termos de hoje] afirma que a verdade não pode ser conhecida, ele está a afirmar uma verdade. O que o torna em um dogmático, dentro de um conceito falacioso e contraditório, pois ele mesmo diz haver algo que não acredita existir. Então, chego à conclusão de que todos são dogmáticos, no sentido de que a ideia de alguém não-dogmático é uma contradição, algo incompreensível e irracional.
Assistindo aos Três Patetas [The Three Stooges], em dado momento, Moe e Larry conversavam à mesa:
Moe: Só imbecis têm certeza absoluta!
Larry, curioso: Tem certeza?
Moe respondeu, convicto: Claro!
É impossível não rir... A piada da dupla [genial, ao meu ver], delineia perfeitamente o erro daqueles que afirmam categoricamente não haver "verdade", mas consideram a afirmação uma verdade absoluta. Moe confirmou, ao mesmo tempo, duas coisas:
1) De que estava a afirmar algo quando a sua afirmação dizia não haver algo afirmável ou conhecível. Ao se sustentar a impossibilidade de se ter uma certeza absoluta, a própria declaração contradiz o teor do que se é afirmado. Há uma contradição que inviabiliza completamente todo o fundamento da afirmação, reconhecendo a sua própria ininteligibilidade, como um conceito autoinsustentável.
2) Quando diz ter certeza de que somente imbecis têm certeza, Moe se considera ao mesmo tempo imbecil e contraditório, visto ser impossível ele manter a sua declaração "absoluta" sem dar um tiro no próprio pé.
Esse é princípio autocontraditório, que destrói a si mesmo ao sustentar e reconhecer algo que não crê possível, que considera falso. Uma afirmação pode ser falsa, mas será uma afirmação, baseada em uma certeza, ainda que essa certeza seja enganosa e falha.
Da mesma forma, quando se diz que a Bíblia é a verdade e de que ela contém paradoxos, temos uma afirmação contraditória [não aparentemente contraditória como querem alguns; mas, como já disse, essa expressão é ilógica e não quer dizer absolutamente nada]; pois ou há de se crer em uma ou em outra coisa; ambas são simplesmente impossíveis e irreconciliáveis, ao impugnarem-se mutuamente, por contrastarem-se como antíteses; duas proposições inteiramente contrárias.
Então se chegará facilmente à conclusão de que não é a Escritura que tem paradoxos, mas o homem é quem os cria ao não reconhecer os claros e definitivos objetivos de Deus em proclamar a verdade absoluta na revelação, pois Deus não pode não revela-los, já que os revelou.
De certa forma, todos somos meio burros diante da grandeza da revelação divina. Algo evidente é a sua perfeição, possível de se reconhecer até mesmo por seres imperfeitos como nós. Porém, como a palavra fiel de Deus, ela é santa e perfeita, e em si mesmo garante-nos a sua santidade e perfeição porque proveniente do Deus santo e perfeito; logo, objetivamente, não é uma questão subjetiva, ainda que seja de fé. Nesse caso, é a fé objetiva na palavra objetiva que garante a objetiva perfeição e santidade do texto sagrado. Não há espaço para antinomias, e é isso o que ela diz.
Quando sou acusado de ser dogmático e de estar à caça de "chifres em cabeça de cavalo", poderia facilmente responder com a acusação de que o acusador não passa de um cético, pois a forma de não se ser dogmático é sendo cético. Mas até mesmo o cético crê em alguma coisa, ainda que essa coisa não seja verdadeira, seja um embuste intelectual no qual ele se aprisiona a si mesmo para não crer na verdade. Mas ele a conhece, ainda que não seja nos termos corretos de conhecê-la, e por isso, e somente por isso, ele a rejeita. É interessante como a negação da verdade nada mais é do que o reconhecimento de que ela existe, visto não ser possível negá-la sem antes admiti-la como legítima. A negação se baseia em algum conceito de verdade, sem o qual não haveria a possibilidade de negação. E quem se autodenomina a-dogmático, nada mais é do que um dogmático que não se aceita com tal; ele rejeita a ideia de ser dogmático, considerando-se não dogmático, mas sem deixar de sê-lo.
O que muitos estão fazendo é negando a realidade como se vivessem num mundo de faz-de-contas; contudo, o que está à sua volta, definido e conceituado muito antes de gerações de seus antepassados existirem, e que ele aceita como sendo verdade, não lhe é inconveniente vivê-lo como algo real, sendo ele mesmo parte da realidade, do mundo real que é impossível negar efetivamente. O que há é um delírio intelectual a negar o que seus olhos vêem, o tato sente e os ouvidos ouvem. Com isso não estou dizendo que toda experiência sensorial é real e verdadeira. Os sentidos podem nos enganar. Mas, por exemplo, quando toco uma mesa, na maioria das vezes estarei tocando um objeto cuja superfície é plana e horizontal, sustentada por um ou mais pés, confeccionada em madeira, metal, pedra, plástico, etc. É impossível que todas as mesas não sejam mesas. E a própria concepção de mesa, mesmo para alguém que nunca viu uma [como o cego, p. ex.] é um conceito tão claro que não se tem como fugir dele. Portanto, quando alguém alega que dogmas não existem, ou que a verdade não existe, do ponto de vista real terá de negar a si mesmo. E, negar a si mesmo, representa negar o próprio ato de pensar e aquilo que se está pensando. Logo, é melhor dar as costas e deixar o tolo com a sua tolice.
Por isso, custa-me tanto compreender porque os cristãos empenham-se em sustentar que existem contradições e antinomias na Bíblia, já que ao fazê-lo, questiona-se aquilo que ela é, a inferir-se como sendo aquilo que nunca foi.
Mas, e quanto ao mistério? A Bíblia possui mistérios?
[Continua...]
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